Casa (Fragmento)

No início do dia, quando a cozinha se enche com toda a manhã que vem da rua e que atravessa as cortinas amarelentas, eu desejo viver numa casa menor. A solidão contida em todo o espaço quase sem móveis, de uma parede branca manchada à outra, é como se me comprimisse, e o pé direito muito alto me dá vertigem – eu que sempre tive medo de altura.
Não que com o tempo eu não tenha me acostumado. Pouco antes de falecer a Má, que deus a tenha, fomos as duas fechando peça por peça da casa, e agora eu só vivo entre meu quarto e a cozinha. Nós duas não tínhamos mais força para limpar o resto, então fomos desistindo da casa aos poucos. Às vezes, a Má me aparece no meio da noite, em sonho, e eu acordo suando frio e com o rádio ligado. Queria que ela não fizesse isso, era uma velhinha tão boa. Não imagino por que não possa descansar em paz. Um dia, pouco depois do enterro, veio o mais velho dela aqui. Rapaz taciturno. Perguntei da esposa, ele não me respondeu. Pediu a bênção, como fazia quando era criança, e me entregou um pote de mel que parece que era produzido na fazenda onde ele morava. Naquela noite desabou o céu e, cada vez que tinha um relâmpago, eu me arrepiava toda, e a casa também se arrepiava e a mobília toda rangia. Fiz muitas vezes o sinal da cruz e pensei naquele rapaz: era a última vez em que eu o via.
Desde que o patrão morreu, a família não veio mais aqui. Soube que a esposa, senhora distinta, se internara em algum asilo pouco tempo depois de enviuvar, pressentindo que não faltava muito para perder a lucidez, e eu não sei bem pra qual dos filhos ficou a casa. Ainda não veio ninguém reclamar. Enquanto isso eu continuo cuidando daqui como minha mãe fazia quando era viva, tomando conta do pomar, das galinhas e dos patos que se criam meio soltos em volta da casa.
Quando dói muito não falar com ninguém e parece que eu vou esquecer como que se fala, ligo o radinho velho da Má na tomada e ouço umas músicas antigas, do tempo em que a casa era cheia de gente. Os retratos escurecidos pelos anos ganham vida e conversam comigo. São muitos os rostos, tão familiares para mim, mas não lembro do nome de nenhum deles. Tem um que eu sei que era médico e que sempre reclama que a casa parece que está atrofiada, e eu faço que sim com a cabeça, “é verdade doutor, mas esse é mesmo o destino de gente velha, ir perdendo aos poucos a memória e os movimentos. Com a casa da gente é a mesma coisa”.

Átimo

Essa poderia ser a história de um rapaz, um rapaz que olha pela janela do carro através da chuva e vê uma moça, uma moça que parece perdida. Não estamos todos perdidos?, ele pensaria, e, tendo coragem de descer do veículo, despindo-se bravamente da blindagem que o envolvia, pediria licença a ela, como um cavalheiro, e lhe pousaria um beijo nas costas da mão, de modo que ela não resistisse ao galanteio e sorrisse, ainda que seu instinto feminino a forçasse a parecer ofendida. Ele a convidaria para fazer qualquer coisa, talvez um café, de acordo com o clichê. Ela, rezando da mesma cartilha dos relacionamentos, de pronto sentir-se-ia ofendida, lhe diria que não. Mas ele, sendo tão doce, com mais uma ou outra palavra e um olhar irresistível, faria com que ela mudasse logo de ideia e seguiriam os dois juntos ao lugar seco mais próximo, que seria quente e alaranjado, em contraste com a chuva azul-cinzenta do lado de fora.
Os dois não trocariam beijos nesse primeiro encontro, é claro, deixariam para conhecerem-se melhor, trocariam e-mails, números de celular, expectativas de tardes ensolaradas ou não tão molhadas quanto aquela, ao menos, em que juntos passariam pelas alamedas dos parques, nos trechos de sol por entre as árvores, e encontrariam num chafariz ao fim do caminho não somente o sorriso um do outro, mas o sorriso acolhedor de um mundo inteiro, que os seguiria com os olhos. Aí sim se beijariam. Passariam os meses e os dois, palpitantes, ver-se-iam cada vez mais, precisando sempre de doses maiores um do outro do que da última vez em que se experimentaram.
Deixar-se-iam levar tanto pelos corações que, quando chegasse o dia em que a paixão se arrefecesse, não conseguiriam, a princípio, compreender o que se lhes faltava, até que começassem a sentir uma solidão crescente e os olhares, cada vez que se tocassem, doeriam, lhes acometendo de súbito uma tristeza imensa que terapeuta nenhum no mundo poderia explicar. Então um dia diriam um ao outro toda a sorte de coisas horríveis que lhes viessem à cabeça, só para escorcharem-se as feridas como se a dor causada, aumentada, diminuísse a sua própria. Perceberiam por fim, depois de muito tempo, que esse jogo de querer mostrar ao outro na pele o quanto sofriam somente lhes faria sofrer mais e mais, até o dia em que acordariam pela manhã compreendendo enfim que a ausência do outro lhes é mais do que indiferente, é um alívio. Respirariam fundo nesse dia, lembrar-se-iam com carinho de uma tarde em que fugiram da chuva, guardariam essa lembrança à chave no fundo de algum lugar que poderiam até chamar de alma os menos céticos, e levantariam da cama enfim em meio a uma manhã branca de sol, aptos a começar uma história nova.
Mas o mundo é tão infinitamente simples que está muito aquém do que queremos poder perceber. A história passa tão rápido pelos olhos do rapaz que ele nem mesmo a percebe e, quando o sinal torna-se verde, tira os olhos da garota e acelera para casa, deixando para trás, e nem sei se faz tão mal, três parágrafos inteiros de possibilidades incompletas e suposições.

Tarcísio e a mãe

pra Leti, pela inspiração; senão
visceral, clássico ao menos.


O inusitado do plano não foi o objetivo em si, mas o método. Tarcísio não suportava mais os encargos do palacete, mas havia a mãe, a mãe que se apegava à cópia da escritura do imóvel, chorava, fazia escândalo, exumava o marido morto e rogava ao filho que mantivesse o patrimônio da família, a casa da praia, senão ela morria, ah, sim, sem dúvida que cairia dura e morta, e os vermes não teriam por ela, da mesma forma, a comiseração que o filho ingrato lhe negara em vida. Professora de literatura aposentada, a mãe era sempre teatral, sempre dramática, e quando estava só, em seu apartamento - que, a custo de muitas lágrimas, ela própria o convencera a comprar no mesmo prédio onde ela morava desde a morte do marido - Tarcísio, o solteirão, irritava-se e prometia a si mesmo não mais sucumbir aos caprichos da velha. Quando ela começava com seus achaques, porém, e dizia que ia morrer e se atirava, fervorosa, aos pés do filho – os longos cabelos prateados desmantelando-se do coque e os olhos como dois tumores negros e semiliquefeitos que consumiam a energia dele – era certo que ele sucumbia comovido, emocionava-se e, quando se dava conta, tinha os olhos também marejados – que podia ele sem a mãe, afinal? Não custava ceder a uns poucos caprichos da velha e solitária senhora.

Tarcísio andava, entretanto, pela casa dos cinqüenta anos e de repente a idéia da velhice o esmagava enquanto andava pela rua, ou quando assistia ao telejornal. As idas ao médico se multiplicavam e sentia que apesar de todo o esforço da alma em agarrar-se à juventude que restava, o corpo inábil a deixava escorrer por entre os dedos. Nunca se casou, não teve filhos e, embora tivesse viajado bastante, nunca passara mais que um mês fora de sua cidade natal, onde a mãe viúva morava desde sempre e para tudo dependia dele. Surpreendia-se constantemente tomado por um sentimento de frustração que lhe irritava muito e ultimamente dera para culpar a mãe por tudo. Em cada fracasso, em cada chance que perdera na vida, passou a enxergar a sombra maternal, “não case com ela, meu filho, não é boa moça, se casar eu morro”, “para que trocar de emprego, Tarcísio, não troque o certo pelo duvidoso, não mate a sua mãe de preocupação”. A última da velha era a súbita paixão pela casa da praia, que era enorme e demandava tamanha quantidade de energia e de dinheiro para mantê-la que não fazia valer as duas semanas que geralmente lá passavam Tarcísio e sua mãe no verão, os dois entediando-se um ao outro e brigando e discutindo o tempo todo, fosse por causa de uma lâmpada queimada, fosse devido a um livro qualquer guardado com displicência.

Era muito mais inteligente se livrar da casa. Explicou à mãe com toda a paciência que não precisavam mais de todo aquele espaço, há muito que não tinham parentes nem amigos assíduos que lhe utilizassem as dependências. Eram obrigados a pagar um caseiro para passar lá o ano e constantemente pagavam à mulher dele por fora para fazer uma faxina no imóvel. E havia também os impostos, eram horrores de impostos todo ano! Além do mais, a propriedade obrigava-os a passar lá as curtas férias de verão de Tarcísio, que poderiam ser bem melhor empregadas se a cada ano pudessem ir a um lugar diferente. A velha fez pouco caso do discurso, porém, e agarrou-se à idéia de que lhe cabia, como matriarca, a consagração dos bens e das tradições de família. Fora o pai de Tarcísio que escolhera aquela praia e aquela casa como o porto seguro de lazer da família no verão e havia sido assim desde que Tarcísio era um bebê e ela era obrigada a limpar suas escatologias. Tarcísio contra-argumentava, em vão, que, se fosse esse o problema, bastava comprar uma casa menor, na mesma cidadela, quiçá na mesma rua, e assim teriam menos trabalho e menores despesas. A velha achou, então, oportunidade para um de seus dramas folhetinescos. Tresloucada e já em prantos, a mulher rogou ao filho que prometesse a ela não vender a casa nem depois que ela morresse. Tarcísio desistiu, então, de convencê-la e já lhe dava as costas quando ela insistiu com o pedido agarrada à cintura do homem, como se ela fosse a filha, débil e indefesa, e ele fosse o pai, senhor da felicidade e do desespero profundo de sua cria. Ao vê-la tão patética, Tarcísio comoveu-se, como de costume, e não teve remédio senão dizer em voz baixa, derrotado: “sim, mãe, eu prometo pra senhora”.

Passaram-se dias sem que a idéia do fracasso em convencer a mãe a aceitar uma transação tão simples e tão lógica deixasse de atormentar Tarcísio. Precisava pensar num modo de convencê-la, de inserir nela tão perfeitamente a idéia de que aquela venda era necessária, que a velha confundida acharia que a iniciativa partiu de sua própria mente senil e empregaria a própria energia histérica em prol da causa, esquecendo-se completamente da promessa a que obrigara o filho. A questão era como fazer isso, uma vez que Tarcísio não era, nem de longe, um exemplo de persuasão. Os colegas de trabalho riam-se sempre de suas contendas com a mãe, não adiantava pedir conselhos a eles, porque sabia que o encorajariam a vender a casa sem dar satisfação à mulher, uma vez em que era procurador dela e herdara também sua parte da casa. Só que os colegas não estariam lá quando ele tivesse que dar a notícia a ela e não tinham idéia do espetáculo que com certeza aquilo renderia. Tarcísio não tinha outras pessoas que pedir conselhos, entre o trabalho e os cuidados com a mãe, afastara-se de todos os poucos amigos que tivera na vida. Não tinha sequer uma amante, dessas que participam tanto da vida dos homens, os suportam em suas decisões e pensam com eles em seus problemas na cama ainda nuas, depois do ato sexual. Fazia anos que Tarcísio não tinha uma amante e sentia que se não tivesse negligenciado esse aspecto de sua vida, provavelmente se sentiria mais homem para resistir às cenas da mãe. Agora era tarde para pensar nesses deixados, concluía ele por fim, precisava de uma idéia para convencer a mãe a vender a casa antes que ela morresse de vez: sabia que não teria coragem de lhe quebrar a promessa depois de morta, julgava-se um desfibrado inseto por isso, mas não podia fazer nada. Sabia que não teria coragem e ponto.

A solução veio por acaso, num café da manhã de dezembro. Costumava fazer o desjejum no apartamento da mãe, sua vizinha de porta. Ao passar manteiga num pão, o velho rádio de cima da cômoda da sala de jantar recapitulava – num radiojornalismo-tablóide, desses tão ao gosto das camadas populares e também dos residenciais geriátricos (com direito a anúncios comerciais de funerárias e de remédios para artrites e artroses) – recapitulava os assaltos e seqüestros a veranistas que assolaram a orla (Tarcísio riu-se do termo – quem ainda se refere à "orla"?) na temporada passada. O radialista perguntava-se, para concluir o bloco, numa eloqüência populista, se teriam de novo que sofrer com a violência os honestos contribuintes do litoral. A mãe de Tarcísio concordava com o que ouvia e fazia pequenos comentários sobre como o mundo era um lugar pior graças às novas gerações e sobre como Popokelvski era um radialista bom e “das antigas”.

Tarcísio achou a princípio a idéia engraçada, depois um tanto quanto ingênua. Por fim disse “e por que não?”, se a mãe era tão afeita a folhetins, não haveria melhor maneira de lidar com o problema. Na mesma semana, saiu como se fosse ir ao trabalho e, antes de alcançar a freeway, fez dois telefonemas: um para o chefe, dando uma desculpa para a ausência, outro para a mãe, se desculpando por não poder almoçar em casa. Ia ter que aguentar o mau-humor da velha mais tarde, mas o plano excitava-o tanto que foi capaz de deixar esse pensamento de lado. Que peça pregaria na mãe! Era capaz de se tornar uma pessoa melhor até, por que não dar essa oportunidade à sua mãezinha? Tinha certeza de que ela iria querer se livrar da casa depois disso, era genial. Mas tinha que fazer direito. À polícia não precisaria mentir muito, era só deixar que a mãe tomasse para si o relato mais contundente dos fatos – o que ela certamente faria, quer ele tentasse a impedir, quer não. Precisava apenas era de um homem de confiança, e o caseiro não ia servir. Depois de todo aquele tempo sustentando aquele homem grosseiro e inútil, que passava o ano todo utilizando seus talheres e dormindo em suas camas, claro que ele não iria se dispor a colaborar com um plano que lhe tiraria o emprego. Resolvera isso no dia anterior, contatara um velho conhecido que conhecia um homem que conhecia outro homem que era perfeito para o serviço. Dirigia agora para o litoral a fim de encontrá-lo pessoalmente e discutir os detalhes do projeto. Estava disposto até a deixar que ele levasse alguns de seus equipamentos eletrônicos como parte do pagamento, até para que a coisa toda ficasse mais realista. Acertara suas férias para logo depois do natal e duas semanas depois partia com a mãe para a casa da praia confiante no plano arquitetado.

Na segunda noite de sua estada, deixou o portão descadeado de propósito. Estavam na sala de estar do térreo, Tarcísio e a mãe, quando entraram dois homens, armados de revólveres 38mm e renderam os dois. A velha gritava enquanto a amarravam, jogava os membros em todas as direções com uma força absurda e chegou a acertar uns bons pares de chutes e socos no bandido, que retribuiu com uma coronhada truculenta no rosto da velha. Não era difícil para Tarcísio fingir o pânico considerado o medo de que tudo desse errado, ou de que a mãe suspeitasse do mínimo sequer, e a violência do homem contra a senhora indefesa o ofendeu de verdade, de modo que ao protestar e xingar o agressor, também Tarcísio levou o seu golpe. Um dos homens permaneceu na sala com os dois enquanto o outro foi à cozinha atrás dos empregados. A velha recusava-se a parar de gritar, xingava o pretenso assaltante com palavras que Tarcísio nem sabia que ela sabia e com outras que mesmo Tarcísio não conhecia. O homem, de boné e óculos escuros, mandava ela ficar quieta, intimidava-a com a pistola, mas era inútil - a velha agora cuspia nele, ele cuspia de volta na velha. Em outras circunstâncias, Tarcísio teria achado aquilo tão grotesco quanto cômico, mas não raciocinava naquele momento, o cérebro como uma esponja pesada, encharcada de adrenalina. Quando o segundo homem retornou da cozinha com o caseiro e a mulher, foram trancados os quatro no banheiro do térreo, a velha ainda chutando e berrando e arranhando o ar com garras invisíveis. Quando, por fim, restaram apenas os quatro no escuro claustrofóbico do banheiro, a idosa começou a perder o fôlego. Respirava rápido e com força e produzia roncos horríveis que vinham de dentro do peito. “Tarcísio, Tarcísio” ela repetia, mas não era capaz de falar com o choque. Tarcísio tentava acalmá-la, insistia que o melhor era se livrar daquela casa, que a propriedade chamava atenção, não havia necessidade daquilo se a mãe o ouvisse só um pouquinho, só de vez em quando. A velha ficou em silêncio. Tarcísio era todo tensão, a qualquer momento agora a velha teria que dar o braço a torcer. Aguardou ansioso o julgamento da mãe por uma eternidade quase material, quase palpável, mas ele não veio. Demoraram a perceber que a velha tinha parado de respirar e Tarcísio reparou que não sentia tampouco os batimentos cardíacos da mãe, amarrada às suas costas, até há poucos momentos fortes e acelerados. A desgraçada estava morta e Tarcísio, paralisado. No silêncio que se fez entre a constatação da morte e a gritaria da esposa do caseiro, Tarcísio pôde ouvir os homens revirando a sala, derrubando e quebrando propositalmente uma série de objetos, bem como ele tinha lhes instruído.