1-A

Mais um capítulo 1, de mais uma história prematuramente falecida.
Começa a ficar repetitivo.


O líquido cor de âmbar escorreu vicoso sobre os envelopes ainda lacrados que Mirna jamais chegaria a ler - depois eu me preocuparei com isso, ela dizia, de um modo que não convencia nem a si própria. Eram três horas da manhã e ela não fumava. Na televisão, um filme mostrava uma Audrey viva e uma Shirley enforcada. Mirna não podia deixar de pensar nisso como uma coisa um tanto quanto macabra, um tanto quanto lúgubre. E se divertia na imundície confortável do quarto, à meia luz, mascarando problemas com álcool e fotos. Não conseguiria ler mesmo que quisesse, escrever tampouco. Levantou-se de repente num surto de impaciência e postou-se à janela. Amava a vista daquela janela. Desde que a bisavó ainda era viva, havia se acostumado com aquela vista noturna, o escuro do parque recortado por luzes aqui e ali, picotando a noite. A rua, estranhamente parada para uma madrugada de quinta-feira, parecia antes cenário que via de passagem. Era verão e a cidade estava vazia, exceto por trabalhadores que não podiam tirar férias e por não trabalhadores desesperados por um emprego. Mirna sabia em qual dos dois grupos estava e em qual dos dois grupos preferia estar. Não pensarei nisso agora, disse ela em voz alta, surpreendendo-se com a própria voz, que ainda existia. Nos paralelepípedos sob a janela, o vermelho de um táxi, areia triturada.

Número 3 saiu de dentro do carro, sob o braço a pasta, a mesma pasta de sempre.

Conselho de quem já tombou do comboio

Quando houver chegada a hora de pular dos trens, ninguém tocará o sino.

Antes, permanecerão todos rijos, uns céticos, outros desejosos, alguém certamente com lágrimas nos olhos. Só a ti caberá o salto, entretanto.

Quando achares que não te cabes mais nos trens, respira: quando houver chegada a hora, acharás somente os trilhos, cruzando as veias qual máquina. E cairás no infinito da estrada de ferro, mais céu que terra. E que toda a terra são trens, isso não importa mais nada.

Chuva gentil

Caiu sobre nós uma chuva gentil, e já não sentíamos nenhum medo. Decidimos descer a pé a longa avenida até a casa da gente. Por volta do meio-dia, andávamos pela metade do caminho.

Compreendemos então que apenas éramos na metade do caminho.

E jamais chegamos em casa.

Impasse

Eu não queria sofrer, ela disse, enquanto alguém, um anjo, diriam, mas muito mais provavelmente uma manifestação de esquizofrenia da fome, sussurrava em seu ouvido: quer sim, e como quer. Lá fora, uma chuva que não havia; na bagunça do quarto, uma caixa de som, músicas tristes em mono, músicas de quarenta, cinquenta anos, talvez. A lâmpada do teto queimada, um abajur barato denunciando uma teia de aranha muito espessa. Qualquer coisa de oceano em fotos antigas, manchadas sobre a mesa entre copos, talheres, lenços, livros e outras humanidades muitas, assimetrias de uma consciência cansada das organizações de outrora. A televisão pequena emite um sinal falho, mudo, um filme preto e branco desistido de si mesmo. À plateia desassistida, restava meia dúzia de cigarros, o gosto metálico dos cigarros, que ela queria, mas não desejava. Talvez fosse melhor se deitar, não dormir, que esse muito ela sequer esperançava. Talvez fosse melhor voltar, mas voltar de onde?, para onde?, porque, no não lugar em que se encontrava, sabia que era impossível haver chegado de qualquer forma.

I 2

Há qualquer coisa de ingênuo na manhã que não me agrada. O otimismo das pessoas, deve ser, saber que há ainda umas boas dezoito horas.

Não manjo dessa coisa de alteridade.

Sento. A uns bons cinco metros, uma criança bastante infeliz arremessa uma bola para uma mãe austera. Olhos no relógio. O blazer não combina com a amarelidade do parque, mas não posso tirá-lo, mesmo sob o protesto de cada poro – os poros não compreendem o sistema político, há que haver decisões impopulares para manter a respeitabilidade do governo, a governabilidade do respeito das outras pessoas. A austeridade da mãe já me encara com certo desprezo, enquanto cofio a barba já passada da hora de aparar, o suor vertendo, o cheiro de sordidez se desprendendo da pele, e ela atrasada, e eu sentindo a dor da cárie, o gosto de sujeira. Passa um isopor sujo, a última nota da carteira transfigurada em refrigerante de cola meio quente, que desce mal. Azia. O meio-dia febril não acaba nunca, mas nada é tão ruim que não acabe: mais uma hora, hora e meia, ela chega. Combinamos. Tento em vão ligar para o número apagado na minha mão, a voz metálica me informa gentilmente que inadimplência significa ausência de comunicação (ela não chega nada!). Experimento colocar uns noves e uns zeros na frente do número e salvar na agenda, ligo, mas o sinal é que o aparelho está desligado. Medito sobre chances. Inerte, vejo a mãe passar a mão sobre a testa da criança, obscenamente gorda. Observo, não sem certa repugnância, a mãe enxugar com a palma o suor do filho, soprar-lhe o cenho, e agarrá-lo pelo pulso. Suor, e mais suor. A mão quase desliza quando a criança obesa não se mexe, mas em seguida é como se as engrenagens esquentassem, ou como se a fome o rendesse, e o menino acaba se deixando arrastar pela a austeridade materna. Credo, penso. Silêncio de um ou dois cachorros no que parecem horas, mas as horas têm a inconveniente mania de não passarem de um minuto e meio. Ela surge do outro lado do parque.

Levanto.

Uns ois, uns despachos simples. Kafka das relações interpessoais. Seguimos andando. Uma palavra sobre a noite anterior, uns silêncios constrangidos, passou a noite onde?, resmungos, certo grau de desprezo, de conivência, de desprezo ainda uma vez. Percebo que ela conta os passos. Eu mesmo não me sinto à vontade.

Chegamos enfim a um banco e, num acordo tácito, sentamo-nos, olhando para a frente. Uns carros passavam, na lentidão do feriado. Senti uma grande gota de suor descer a linha do pescoço, sorvida em seguida pela gola da camiseta. Meu estômago revira-se de nojo, ela percebe, e eu percebo que de alguma forma ela pensa que o nojo que eu sinto é dela. Não tenho sequer a boa iniciativa de lhe dizer que não se preocupe. Era minha melhor amiga, e eu gostava dela, mas seu mal-estar me comprazia de um modo um tanto sádico, um tanto egoísta, pior, autoindulgente: não tenho do que sentir vergonha, estamos no mesmo barco, condenados os dois à humilhação de reconhecer a própria torpeza, e ainda esmagados pela insignificância de ambos. Para os que se reconhecem condenados, há que haver um exagero, para que o sofrimento da culpa valha a expiação.

Amizade

Te corto porque te amo, idiota.

Academicismo

A maior pensadora do século XIX foi a filósofa estadunidense Scarlett O'Hara. Além de sua famosa máxima "after all, tomorrow is another monday", escreveu o best seller feminista Onde você vê uma cortina, eu vejo um vestido, pioneiro ao tratar do empreendedorismo das mulheres americanas no pós-guerra.

Nota para momentos de pânico #1


Nada é tão ruim que não acabe.

Pragmatismo


Hoje admiti que deus existe.

Somente a existência de um ser superior, pleno de poderes, cujo propósito fundamental é a punição dos meus desvios morais, explica a velocidade da minha internet.

How insensitive

Curto essa coisa minimalista, mas não ao extremo, saca. - disse, e caminhou até o oposto do quarto, e cobriu o abajur de vermelho.
Assim não, o outro protesta, e descobre a lâmpada.

Descobre a lâmpada.

O primeiro apaga a luz.

Só tinha de ser com você



Às vezes tudo o que falta é um contato da Bretanha às quatro horas da manhã de um dia útil. Aí a escolha fica clara como água: a escolha é não escolher nada, que é pra não perder essa coisa boa que é precisar um do outro.

Karma

Sozinho no quarto àquela hora da madrugada provocando os próprios nervos, Suzanne Vega reading a newspaper, só por diversão. Do outro lado da tela, o outro espera por um sinal eletrônico, talvez, um sinal que não vai vir tão cedo, porque não sou desses, porque em seguida eu durmo assistindo um seriado qualquer escrito por uma ex-stripper ou seja lá o que for. Suponho.
Detalhes. Lua em gêmeos, ha, praticamente satanás, foi o que me disseram. Eu nunca disse que era uma pessoa boa, mas tenho ascendente em virgem, então o pessoal vai logo pensando que eu sou uma pessoa boa, e bem organizada e competente – competente, minha vida é o caos, cara. Mas eu sou ateu, graças a deus, nem acredito nessas coisas: só pega em quem acredita.
O outro dia passa sem manhã, querendo ou não, já são seis horas, e a garganta arranha e machuca e o esôfago infla com todo o vazio do mundo. Quem garante, quem garante, melhor mesmo é sentar-se na cama, bem aquecido, preparado, mas inerte, e esperar a vida passar. E se eu morro, aquela pergunta, ora: se eu morro é melhor. Vou ficar aqui quietinho fingindo que já morri só para experimentar como é e quem sabe provar meu ponto de vista. Quem sabe, quem sabe.
Quando chega a hora me despeço do orgulho, ritual de passagem, conecto e penso “quanto de paciência existe no mundo”. Nada, nada. Não sei. Conecto. Nenhum sinal, e a culpa é minha. Deixemos para amanhã, vou ali morrer mais um pouco e quem sabe não reste muito para ser morto pelo vazio. Pela própria incompetência. De novo: suposição.

1.

- Cara, olha que coisa genial: vou pegar para te mostrar.
Deixou-o só, sentado na saleta claustrofóbica, entulhada de dois sofás encardidos, uma estante caindo aos pedaços de cupim e uma mesa quebrada de computador em que se equilibrava a muito custo um modelo informático antigo, todo cinza e muito sujo, zunindo no silêncio do apartamento.
- Posso tomar um copo d’água?, perguntou, e o dono da casa gritou que sim, que podia pegar na geladeira.
Levantou-se e buscou a água, tendo o cuidado de servir-se da garrafa que estava lacrada, porque o amigo era desses que tomam a água no bico e, portanto, se ele se servisse da garrafa que já estava aberta, a água lhe pareceria ter gosto de cuspe.
Seu anfitrião já vinha animado do quarto quando ele voltou à saleta, e trazia consigo uns papéis desalinhados com notas diversas escritas a lápis.
- Este – disse o amigo numa solenidade que ele não conseguiu levar a sério – é um esboço do meu primeiro romance. Vê-se que vai ser uma obra prima. Nasci para escritor, me dói que tenha demorado tanto a perceber meu real talento, meu destino, minha razão de vida.
O amigo lhe sorria calorosamente, sorriso que ele retribuía com um silêncio permissivo, ainda que constrangido.
- Estou te falando – continuou – se Camus estava certo, então a minha escolha é não cometer o suicídio, pelo menos não antes de terminar essa obra. Depois, só o que precisará viver será meu nome, meu corpo poderá apodrecer se assim Deus o quiser.
Falava por falar, pela força da expressão, rábula que era. Não acreditava em Deus, e Ramiro bem o sabia porque era ateu também, e por isso encolheu-se, todo irônico: “Eduardo dramático”.
- E qual é o enredo? – perguntou sem emoção – Me desculpa, Eduardo, mas tu sabe que eu não vou ler teus garranchos.
Eduardo achou graça na franqueza e riu obscenamente. Ramiro irritou-se. Desprezava aquela indulgência, desejava ferir o amigo, fazer contorcerem-se de dor aqueles lábios que não sabiam o que era a melancolia, quebrar os dentes brancos e perfeitos acostumados a conquistar confianças alheias. Sentia-se incapaz, no entanto.
- Certo, não precisa ler. É sobre uma cidade...
- Uma cidade? – perguntou um Ramiro contido, querendo demonstrar ceticismo.
- Sim – Eduardo levantou-se com energia e se botou a explicar sua história, através de gestos, perdigotos e grunhidos, assemelhando-se, na ideia de Ramiro, a um animal selvagem, grande e estúpido, que precisava ser protegido de si mesmo – É sobre uma cidade que, no verão, é invadida por uma fumaça negra, – prosseguiu; falava com dramaticidade – uma fumaça estranha e sobrenatural que toma as ruas e as casas, engole a luz do sol e deixa tudo frio de repente. Um frio asfixiante de humo. Aí as pessoas que vivem na cidade se isolam uma das outras e vão enlouquecendo aos poucos. Veja que é necessário que se isolem, para que percebam, de uma vez por todas, que já eram isoladas, esmagadas pela rotina, sabe, pelos pequenos traumas, pelas coisas sem importância que se repetem e se repetem, por suas reclamações insinceras de tédio, porque, na verdade, elas gostam do tédio, elas amam o tédio, o tédio é seu deus, pois, se deixam de acreditar no tédio, de falar do tédio, de cultuar o tédio em seus perfis no Twitter, então toda a existência que elas conhecem está comprometida, entende? Elas se conhecem através do tédio, o tédio é o que lhes dá razão e sentido.
- Entendo, – refletiu Ramiro – mas não sei. Acho que talvez essa tua ideia de tédio seja um tanto quanto batida, um tanto quanto lugar comum, sabe? Senso comum.
- Tu acha?
- Acho. Não sei se gosto.
Silêncio. Eduardo sentou-se ao lado de Ramiro, que podia sentir seu desapontamento, as células murchando, o entusiasmo se esvaindo, a expiração derradeira do orgulho moribundo. Adorava ser espectador daquela agonia e gozava a dor do outro com bem disfarçado triunfo.
Eduardo ruminou a resposta negativa do amigo por algum tempo, depois o encarou com seus olhos enormes e escuros. Pousando a mão no ombro de Ramiro, numa atitude carinhosa que era bem do seu feitio, suspirou.
- Cara, tua opinião conta muito para mim. Sério mesmo que tu não gostou?
Ramiro atrapalhou-se com aquela demonstração ridícula. Impertinência, impertinência. Franziu a testa. Desesperado, desvencilhou-se do calor da mão e tentou explicar, sem jeito, que não era bem assim, não fora bem isso que quisera dizer. O argumento era muito bom, sim, só o que era preciso era lapidar um pouco a justificativa.
- Aliás, para que se prender a uma justificativa? Deixa o enredo justificar-se por si, a ideia toda é muito boa, a história tem potencial – completou e esforçou-se para mostrar um sorriso encorajador. Eduardo deixou-se consolar como um menino, mas a frágil casca dentro de si já se quebrara sem conserto. Ramiro sabia, fora ele quem provocou o estalo. Fizera de propósito e agora sentia remorso.
- Bem, pode ser – concluiu Eduardo, recuperando de uma só vez o tom enérgico que lhe era característico – Enfim. Estamos é perdendo tempo. Vou tomar um banho rápido e em seguida saímos. Precisa de alguma coisa?
- Não, fico bem aqui.
- Ótimo, volto já.
Ramiro, já sozinho, engoliu o que restara de água no copo num só gole, a garganta parecendo que ia rasgar. “Imbecil”, pensou, resistindo a declarar, ainda que mentalmente, a quem se referia.