O cavalo dançarino

Sonhei com o cavalo que dançava. Quando eu era criança, via aquele cavalo e achava o máximo a disposição que ele tinha de se embalar o tempo todo, a cabeça para lá e para cá, a pata dianteira direita marcando o ritmo trinário de uma valsa. Perdia horas na chácara, estava sempre aproveitando um descuido dos outros para me isolar nas baias e prestar atenção na dança do cavalo, que morreu pouco tempo depois, assim que nos mudamos, eu e minha mãe, meu pai ficando para trás e amaldiçoando-nos como se fossemos os culpados da morte do animal dançarino. Ele veio me ver esta noite, falou comigo. Juntos nos lembramos daqueles tempos, quando eu acordava muito cedo para ir à escola na cidade e voltava correndo à hora do almoço, louco para vê-lo, abraçá-lo, falar com ele sobre qualquer coisa assim que nos aproximasse. Ele me contou o quanto foi triste ficar na chácara depois que nos mudamos, quanta saudades sentiu enquanto definhava, uma morte solitária, dançando sua valsa até o fim. Éramos bons amigos eu e aquele cavalo. Veio sobretudo para me dar conselhos.
Acordei às quatro da tarde, os lábios cortados como se tivesse mastigado cacos de vidro. Era tarde demais para ir à aula. Ninguém em casa, comi qualquer coisa que sobrou do almoço. O telefone tocou até que o desliguei com raiva, não estava em casa, tecnicamente. Às cinco horas, peguei a mochila e fui à biblioteca da faculdade, onde dava para ficar sozinho sem pagar nada, porque minha mãe logo chegava do trabalho e eu não agüentaria ficar em casa. Escolhi a mesa mais ao fundo para dormir até umas oito horas, às nove tinha um compromisso. Dispus os livros à minha frente como quem arruma o travesseiro, quando a surpreendi me encarando. Não pude conter um estalo de língua, ela percebeu e enfureceu-se, veio direto em minha direção bufando. Eu já guardando os livros de volta para uma provável saída emergencial. Ainda não tinha decidido se a ouvia antes de sair quando ela puxou a cadeira e sentou-se, o nariz contraído de raiva esperando que eu me explicasse.
– Não tenho nada para explicar – Ela meio que quis rir, controlando-se, porém.
– Não é questão para explicações, é só confirmar o que é óbvio, a palavra final para oficializar o negócio, a legitimação para partir para a próxima.
Era a jurista falando, perdi a calma.
– Tudo o que eu tinha para dizer eu já disse no telefone, com licença, sim?
– Como assim com licença?
– Eu tenho um compromisso – levantei. Ela me acompanhou no gesto.
– Você ia dormir. Foi exatamente aqui, dormindo, que eu te conheci.
Flashes de nós dois, dedos entre cabelos num sofá de boate, como é que ela me levou a sério?
– Posso pedir um porquê? – Ela disse entre dentes, o orgulho que eu esmaguei desintegrando-se bem diante de mim.
– Eu já expliquei. É uma questão de fato. Cansei, enjoei, chama do que você quiser.
– A gente combinou...
– Sim, a gente combinou, mas eu não tava a fim sabe, tava a fim de fazer outras coisas, de dormir mais, mas não podia porque tinha combinado, mas que é vale a combinação?, por que é que tem que ser tudo assim institucionalizado, preso, desagradável? Por que não pode ser leve?, espontâneo?, não tô a fim, não tô afim, ponto final.
– Não é por isso ou por aquilo, não é porque sou eu. Você combinou, eu não deixaria de cumprir o combinado porque é falta de consideração com a pessoa, entende, seja ela quem for.
– Você me vê combinando coisas por aí com alguém? Eu deixei isso claro, você me obrigou a combinar. Você provocou tudo isso.
– Não dá mesmo para falar com você. – ela suspirou. Deixou-me na biblioteca. Olhei para o lado. O cavalo estava ali, dançando. Rindo de mim.

Uma noite com Ginger Rocha

Sou Ginger Rocha, habitué da noite porto-alegrense. É muita pretensão do tio Magorski chamar isto daqui de “uma noite com Ginger Rocha”, porque não existe uma noite na vida de Ginger, a vida de Ginger é uma noite que não acaba. Claro que fica tudo por isso mesmo, porque já deixei o tio Magorski fazer coisas muito menos providas de ética com Ginger Rocha do que isso. Ginger adora eufemismos bem articulados. Tem quem diga que eu sou uma clona brasuca da Patty Dimhusa do tio Pedrito. Em primeiro lugar, detesto essas gírias de gente contente, “brasuca”, xingue, mas respeite a si mesmo; quem fala “brasuca”, fala “fofo”, “massa”, “do balacobaco”, passa e-mail de auto-ajuda e acha que o mundo é um lugar bom de se viver – então que vá assistir ao Luciano Huck e não encha o saco. Jamais poderia me comparar com Patty, mestra e ídala, simplesmente porque Patty é internacional e Ginger, por sarcasmo do destino, é tão provinciana quanto cerveja Polar e mais bairrista ainda. Super me mudaria pra São Paulo ou para Buenos Aires, mundos de verdade, mas não suportaria os paulistas e os argentinos, respectivamente. Ginger pertence à noite de Porto Alegre e a noite de Porto Alegre precisa de Ginger para ficar um pouco menos boring do que já é. Mas Porto Alegre nunca vai ser Madrid, Ginger nunca vai ser Patty. Entretanto, admito: imito a Patty, sim! Essas galinhazinhas de hoje em dia não imitam a si mesmas o tempo todo com seus lencinhos Glória Kalil? – até meus amigos homens, que são todos gays, menos um, andam com essas coisas no pescoço, acho que eu estava de porre quando esses pedaços de pano dominaram o mundo, ou eu teria organizado um levante contra eles; e Ginger Rocha sempre ganha. Sou uma imitadora originalíssima, e é isso que me difere das franguetes da Independência.
Hoje, vou contar de uma noite dessas, como o Tio Magorski me pediu. “Se der certo essa porra”, ele me disse, “quem sabe você não aparece sempre aqui pelo blog, né, Ginger, meu amor”. Vamos lá, vamos ver o quanto as pessoas acham a Ginger aqui interessante.
Naquela noite, eu tinha vontade de acender uns dois, três cigarros, não sei o que se passava comigo. A Li – minha best da vez – não chegava nunca e os caras da mesa ao lado já me olhavam e riam indiretas e eu, que já me irrito facilmente, nem sabia o que eu fazia com os braços e nem queria mais minha cerveja. Da rua vinha um frio absurdo.
Decidi passar no banheiro e depois esperar do lado de fora, onde eu me sentia menos vulnerável, apesar do frio. Alguém que espera de pé na rua é menos loser que alguém que espera sentado num bar, porque esperar sentado pressupõe a possibilidade de esperar pra sempre, de ter sido deixado de lado, de ter sido escanteado por alguém; quem espera do lado de fora, de pé, na rua, ainda mais sendo mulher (sozinha como eu estava), espera com uma certeza, com a segurança de quem vai só fumar mais um cigarro porque a companhia se atrasou, mas vem - sempre vem.
Passou um táxi, passou outro, lá pelo décimo que passou comecei a ficar realmente puta - mas que diabo ela pensa que eu sou - e decidi andar, andar rua abaixo, meio que sem rumo, esperando que o mundo desse jeito naquela agonia que me matava de tédio e que eu conhecia de todos os dias. A Li ia se ver comigo. Dobrei numa esquina escura, nem pensei no medo, dobrei e vi uma luz meio vermelha, bar de putas ou seja lá o que era, vi e entrei. Sou dessas que sempre pensa que a sorte está esperando num single bar de um bar de putas. Lá dentro, uns losers como eu, mas assim que eu entrei e eles me viram, não me senti mais à vontade e pensei mesmo em sair correndo dali, aquelas pessoas nunca mais me veriam na vida mesmo, mas quando dei por mim já tinha sentado numa mesa bem suja, sentar direto no single bar é dar a cara a tapa, e já tinha pedido uma coisa barata pra garçonete muito antipática. Nem parecia um bar de putas por dentro, ou pelo menos eu não via nenhuma.
Logo uns bêbados começaram a discutir e um cara meio velho, meio novo saiu de trás de um balcão e botou os dois pra fora. Não era assim lindo e maravilhoso e eu bem que achei a voz dele meio afetada, mas eu me amarro num cara meio estranho, que faça as pessoas perguntarem. Decidi que eu meio que queria aquele cara.
Depois da briguinha todas as pessoas se acalmaram e continuaram sua noite boring, todas menos eu, que peguei a bolsa e me fui sentar no balcão pra ver meu alvo mais de perto. Ele era um tipo de barman. Pedi a ele uma vodka "pura com gelo", "pura?", e eu repeti, e ele "é isso mesmo que tu quer?" e eu olhei lá no cérebro dele "te quero com limão e sal". Mas disse "ops, com gelo e só". Ele me serviu a vodka e eu comentei que tava muito frio e ele nem deu muita bola pra mim. Terminei bem rápido pra pedir mais uma. Ele sorriu e disse "calma lá, não quer uma cerveja?", mas eu insisti na vodka. Amo vodka, "Vodka, você está aí? Aqui é a Ginger". Eu perguntei se o bar tinha aberto há pouco, porque eu não conhecia, imagina, Ginger Rocha não conhecia aquele bar, e ele me respondeu que estava lá já fazia uns três anos, que ele mesmo é que tinha aberto - de "tipo um barman" o meu crush evolui pra "tipo o dono do bar" e eu pensei "opa! já é". Ele de vez em quando tinha que atender alguém, mas sempre voltava pra falar comigo, porque eu comovi o rapaz com a história de ter sido abandonada no outro bar pela minha "melhor amiga", disse assim mesmo, fazendo aspinhas com as mãos, que homem adora mulher fazendo essas babaquices, de certo acham cute. E eu era só feromônios, também há que se considerar isto. Enfim, eu nem sabia mais que assunto puxar, decidi encostá-lo na parede da próxima vez, dizer - senão com todas as letras, com toda a convicção – pros hormônios dele que eu tava tri a fim. Superafim. Pra chegar nesse nível de determinação, é preciso dizer, eu passei por uma longa reflexão; na bagagem, dois meses de abstinência sexual, sobre a mesa, quatro doses de vodka vazias – eu não sou tão vadia barata assim como faço parecer às vezes. Sou Ginger Rocha, habitué da noite porto-alegrense.
O cara veio de novo mais rápido do que eu imaginava e eu “opa, azar, é agora”, e disse pra ele:
– Duas palavras: absinto.
– Oi? 
– Issae.
– Absinto é meio forte pra quem já pegou quatro vodkas.
– Me pega.
– Como?
– Digo, isso mesmo, absinto. Dois. Eu não perguntei teu nome.
– Ivan.
– Continuo não perguntando. Mas já que tu me disse, Ivan, podia pegar dois absintos e fazer o favor de tomar um deles comigo?
– Infelizmente já estamos fechando, os garçons estão reclamando que querem hora extra. Daqui a pouco já estou indo pra casa...
– Você mora onde, Ivan?
– Cidade Baixa.
– Coincidência! – Tri que eu moro na Zona Sul, pelo menos durante a semana. Mas Cidade Baixa é Zona Sul, come on. E Bomfim é Zona Norte.
– Se tu quiser, divido um táxi contigo.
– Tô de carro, chica.
– Melhor ainda.
Foi assim que o furo da Li me rendeu uma bela noite – apesar de não me lembrar muito bem dela, porque depois que chegou em casa, que chegamos na casa dele, o Ivan não precisava mais dirigir e daí foi só whisky. Digo, só alegria. Pra ficar no eufemismo bem articulado, digamos que a boca do Ivan conheceu e se tornou íntima de partes do corpo de Ginger que nem Ginger conhece, ela que sabe tudo da night. Minha mestra e ídala, Patty Dimhusa, ficaria orgulhosa. No outro dia passei na casa da Li lá pelas onze horas, para tomar um banho, e ela veio dizer “desculpa, Gi, fui em outra festa, sinto muito”, mas eu achei que não parecia muito sincero, melhor se ela dissesse “desculpa, Gi, fui noutra festa”. O Ivan me rendeu um ou outro rolo depois, mas isso fica para depois, porque eu tenho que dormir antes que anoiteça – Ginger Rocha não perde tempo dormindo depois que anoitece. Vamos ver se o tio Magorski se pilha de contar esses rolos outro dia.

Uma taça de leite quente

Havia qualquer coisa na manhã que era diferente. Raissan de alguma forma notou, mas não acreditava que lhe dissesse respeito, era provavelmente o ar mais poluído, a rua mais suja, o arroio mais fétido, qualquer coisa assim que não fazia diferença para ele. Tirou os sapatos, como de costume, dobrou cuidadosamente o moletom e escondeu tudo debaixo de uma das pontes que cruzava a avenida, receoso dos outros meninos da rua. Àquela hora da manhã, o fluxo de automóveis era bastante intenso já, Raissan tomou seu lugar ao lado do semáforo. Mal avermelhou o disco, partiu para a primeira rodada do dia. Teve sorte logo no primeiro carro, uma moça, uns vinte anos, lhe alcançou umas moedas e uma metade de sanduíche, que acabou dividindo com três ou quatro meninos que conhecia de vista, porque sabia que os egoístas não duravam muito tempo no negócio. Seus pequenos pés, endurecidos da labuta diária, iam e vinham ágeis entre as máquinas, uns carros fechando suas janelas depressa ao avistar-lhe e aos outros meninos, outros recusando ajuda. Outros ainda contribuindo com um trocado, mas todos eles de olhares temerosos, pavor, pavor pregado nos rostos. Raissan não compreendia, com toda sabedoria de rua que tinha aos quatro anos, porque era que os olhares dos homens dos carros eram tão pavorosos. Raissan tinha muito medo do escuro e à noite, quando a madrasta e os irmãos dormiam ao seu lado, e sempre dormiam antes dele, pregava os olhos e ficava imóvel, mudo de terror, exatamente como aquelas pessoas ficavam quando ele se dirigia a elas, então, de certo modo, sabia o que sentiam. Não sabia bem era o que é que temiam, algum monstro, ou bicho, ou inseto, não sabia, não podia entender como era que aqueles homens e mulheres tão adultos, tão limpos e confortáveis dentro de seus carros, podiam temer tanto alguma coisa na ordem estofada que eram suas vidas. Estofamento e medo eram duas idéias que, para Raissan, não faziam sentido unidas.

Nos intervalos entre uma fechada de sinal e outra, Raissan gostava de observar os personagens que se aglomeravam no cruzamento. Havia as crianças como ele, pedindo, os adultos que também pediam, as crianças e adultos que vendiam alguma coisa, os artistas e os vendedores de jornais, que procuravam não entrar em contato com o resto, um ou outro pedestre, que passava bem depressa, e os motoristas, cujos perfis compenetrados passavam mais depressa ainda. A velocidade deles não se comparava, é claro, proporcionalmente, à velocidade das curtas pernas de Raissan, grossas de ficar em pé o dia todo, que conheciam pelo tato o caminho entre os carros e lampejavam aqui e ali, onde houvesse uma janela aberta. Uma vez ou outra, esperando o momento de pedir, Raissan desejava que o dia passasse tão depressa quanto os intervalos dos semáforos. Detestava passar o dia todo ali, digo, para ele não faria diferença passar algum tempo na sinaleira, uma hora ou duas, ou até atingir determinado valor, porque no fundo, não era um menino preguiçoso, mas não tinha essa opção. Era ficar no sinal do amanhecer até quase a madrugada, ai dele se aparecesse antes. E se tentava escapar, a madrasta sabia, sempre sabia quando ele não permanecia o dia todo em seu posto, não sabia como, mas aquela danada daquela mulher podia adivinhar-lhe as mentiras, e, quando isso acontecia, era surra na certa. Já pensara em fugir para sempre também, nunca mais voltar para casa, mas não tinha para onde ir. Sofreria mais num abrigo sem o pai, sem os irmãos, sem ninguém, e mais ainda na rua, as coisas que as crianças que ficavam pela rua tinham de fazer eram terríveis demais mesmo para Raissan, que estava acostumado com a aridez do asfalto, com a dureza do cruzamento. O menino ficava exausto só de pensar na caminhada que lhe aguardava no fim do dia, da avenida até a casa da madrasta, mas não voltar para lá, ficar pelas marquises da avenida, como muitos dos que ele conheciam ficavam, era potencialmente pior.

Lá pela metade da manhã, Raissan já havia juntado uma quantidade razoável de moedas, poderia até barganhar alguma coisa para almoçar ao meio-dia. Estava satisfeito consigo mesmo. Foi quando avistou o Renan.

O Renan era o líder de um grupo de caras mais velhos, de treze, quatorze anos, que se chapavam e achavam que por isso podiam mandar nos menores. Metiam medo em todo mundo, andavam sempre em bandos, como uma matilha, pedaços de metal afiados nos bolsos, cola nas mangas, chinelos de dedo e tênis roubados de outros moradores de rua. Habitavam uma praça no centro durante a madrugada, dizia-se que alguns deles até se prostituíam, mas ai de quem falasse isso perto de um deles, ou que eles ouvissem falar de alguém que tivesse dito isso: era lâmina para o infeliz. Uma vez, Raissan presenciara quando um menino um pouco mais velho que ele, que devia alguma coisa ao Renan, não se sabe bem, e que quando avistou o bando vindo, mais ou menos na mesma hora em que vinham hoje, tentou fugir deles para o meio da rua e morreu atropelado. Naquele dia, Raissan voltou mais cedo para casa, assim que escureceu. Contou para a madrasta o que acontecera, explicou que o maior medo que tinha era de morrer atropelado e que se sentira tonto o dia todo depois de presenciar a morte do outro garoto. A madrasta não lhe bateu daquela vez, apenas gritou com ele, “e medo de morrer de fome, você não tem”, e Raissan não pôde dormir por uns dois dias depois disso; cada vez que pegava no sono, era como se o menino morto viesse falar com ele, dizer para tomar cuidado com as ruas tocando os dedos transparentes e frios no seu ombro, o mesmo cheiro do arroio invadindo as narinas de Raissan. Dizia também para não se meter com Raissan, não usar cola, nem usar pedra, que foi por causa disso que ele morrera. Raissan tinha muito medo de cole e de pedra, tanto quanto tinha de escuro e de atropelamento. O pai, mesmo ébrio, lhe dizia sempre para não se meter com essas coisas, mas nem precisava, Raissan se mantinha longe delas por vontade própria. Naquela manhã, ao ver se aproximar o bando de Renan, usou sua técnica de ficar invisível, aprendida um desenho numa manhã de domingo, o único dia em que a madrasta o permitia não ir para o sinal pela manhã. Não sabe se é porque estava nervoso, ou porque estava nublado – desde o início sabia que aquela era uma manhã diferente –, mas o fato é que não funcionou o truque, Renan não somente o avistou como decidiu mexer com ele. O bando parou rindo do seu lado, um dos caras já cutucando o seu rosto, outro pedindo dinheiro, “ajuda aí meu, todo mundo tá dizendo que tu tá bem hoje”. Como ele fizesse menção de não entregar o dinheiro, o próprio Renan o segurou rudemente pelo ombro e mandou ele passar algumas das moedas que conseguira, porque “quem era egoísta não sobrevivia no negócio”. Raissan alcançou ao garoto um punhado de moedas de má vontade. “Mais, meu”, exigiu o bando, Raissan foi dando mais, já dera mais da metade do que reunira naquela manhã, “mais!”; deixaram-no sem uma moeda sequer. Renan ainda cuspiu nele antes de ir embora, “bicha, tem um jeito de mulherzinha”, desapareceu o bando numa nuvem de loló, rindo feito doidos, feito humanos ante um filme de terror daqueles violentíssimos.

Raissan sentiu vontade de chorar, mas num segundo só sentia raiva, falou todos os nomes feios que conhecia, os débeis lábios explodindo ferozes em vulgaridades pornográficas e escatológicas, muitas das quais nem sabia o significado – muitos adultos de quarenta anos que passavam indiferentes em seus carros não sabiam os significados da maioria delas.

Voltando para casa à noite, cabisbaixo, com metade do dinheiro do dia nos bolsos, pensou num milhão de vinganças que podia pôr em prática contra Renan, formaria seu próprio bando, pagaria por uma arma, machucaria tanto o Renan antes de roubar tudo o que ele tinha e depois o deixaria nu para ser atropelado no meio da avenida. Chegou em casa um pouco mais tarde que de costume, a madrasta foi logo lhe gritando da oura peça que o irmão estava doente e que precisava de ajuda, e também que a janta que fez acabara porque seu pai chegara em casa com muita fome e que ele podia ver alguma coisa na geladeira para comer.

Ouviu, Raíza? – a menina levou um susto ao recobrar a condição feminina. Eventualmente se esquecia de que em casa ainda havia alguma segurança. Lavou os pés escurecidos enxugando-os no pano de chão. Na geladeira, apenas leite gelado, que Raíza serviu numa caneca de plástico. Esqueceu a avenida no que durou aquele leite, deixou de lado o Raissan, o Renan e seu bando, o disco luminoso trocando de cor sobre os motoristas e seu medo. Quase esqueceu os próprios medos, mas eles voltaram quando, no quarto escuro, a madrasta a mandou ficar de guarda e foi se deitar com seu pai do outro lado da cortina. Adormeceu tirando a febre do bebê, o gosto de leite ainda na boca.

Sapos

Do fundo da casa, o coaxar dos sapos trazia à madrugada uma alegria nostálgica. Ao longe, podia-se ouvir o mar. Dois homens adultos largados numa varanda sentiam no rosto a brisa quente de dezembro e permaneciam em silêncio já havia uma eternidade. Do outro lado da rua, uma coruja os espreitava receosa de seu ninho, que nunca se sabe o que esses forasteiros são capazes de fazer embriagados. Uma mulher veio de dentro, copos nas mãos. Sentou-se no meio dos dois homens e quebrou a harmonia muda da noite.
– Sinto que está para chover.
Como nenhum dos dois respondia, ela continuou – Tão enormes vocês dois, tão velhos e ainda de birra.
O homem à esquerda, regata e chinelos de dedo, olhou para ela como se subitamente percebesse sua existência. O homem à direita, barba cerrada e óculos de grau, continuou encarando o nada, limitando-se a fazer uma careta – era o mais orgulhoso dos homens.
– A mãe de vocês diria o que dessa situação?
– Provavelmente ficaria do lado desse aí – resmungou o barbudo sem mover o pescoço.
O homem que não tinha barba bufou, “sempre o mesmo”. A mulher entre os dois estalou a língua, ajeitou-se sobre os próprios joelhos – Adianta manter essa implicância um com o outro, adianta?
O de barba pediu licença e já ia se levantando, a mulher o reteve – Pode ficar aqui, resolveremos isso agora mesmo.
– Como que se resolve vinte anos agora mesmo? – indagou o sem barba, sem se dirigir propriamente à mulher.
– Indo dormir é que não se resolve. Eu não tenho a paciência que a mãe de vocês tinha, família é coisa séria e eu disse que não ia dormir enquanto não resolvesse isso.
– Bom, então você fica aí conversando com seu maridinho e resolvendo isso que eu vou para a cama, quero voltar pra cidade ainda amanhã de manhã.
– Deixa, deixa, que não dá pra falar com ele. Não escuta.
– Você que escuta, não é mesmo?, mas só para poder dizer que é você que está sempre certo.
– Ok, já estabelecemos um diálogo ao menos. – a mulher espalmou as mãos sobre as coxas. Um relâmpago ricocheteou no horizonte ao mesmo tempo, o ar tornou-se mais pesado.
– Não me entendo com esse daí nem que chovam sapos – disse o irmão que estava de pé, e acrescentou – aliás, pergunta para ele por que é que eu detesto sapos.
– Você me diz, por que é que você detesta sapos?
– Um dia a gente tava brincando aqui mesmo nessa casa – respondeu o da regata num meio sorriso – eu e meus amigos...
– Sim, porque só ele é que trazia amigos para a casa de praia. A mãe implicava com qualquer pessoa que tivesse a audácia de apreciar minha companhia. Mas ele não, ele podia ter quantos amigos quisesse, eram todos muito bons...
– De fato, seus amigos eram um pouco estranhos. Todos eles, se é que você me entende.
– Você não tinha me conhecido se eu não tivesse sido amiga dele primeiro – atalhou a mulher.
– Você foi a única com quem a minha mãe não implicou, decerto porque sabia que ele também gostava de você, gostava de você de um jeito que eu nunca pude gostar.
Os três retomaram o silêncio num certo constrangimento. O irmão de barba se arrependeu um pouco do comentário, o de regata abriu a boca para falar um par de vezes, mas não encontrou palavras, pelo menos não boas palavras, palavras que não o comprometessem.
– Enfim – a mulher foi quem quebrou o silêncio novamente – você estava aqui com seus amigos...
– Sim, e eles acharam uma boa idéia – tentou continuar o irmão de regata, mas o barbudo o interrompeu mais uma vez.
– Seus amigos não prestavam. Um era filho do agiota, a outra era filha do estelionatário, os dois iguais aos pais e iguais entre si, não foi à toa que se casaram.
– Eu não sou obrigado a ouvir isso. – Foi a vez do segundo irmão se levantar – A sua gente é que é decente, é? E você quem é para julgar, hein? Me responde, grande coisa que você é, meia dúzia de faculdades pela metade, remédios tarja preta. Quem é você, hein? Eu não fui criado com você.
O de barba enfezou-se, cruzou os braços e apertou os lábios, como um menino grande. O de regata, muito mais corpulento que o irmão, embora ligeiramente mais baixo, o enfrentava de peito estufado, braços para trás, provocando o irmão, patético galo de briga.
A mulher levantou-se também, temendo já pelas vias de fato, mas os irmãos não chegariam a tanto; depois de uma certa idade, nunca mais tinham se agredido fisicamente – o que não fora necessariamente saudável.
– Estamos aqui para resolver problemas, não para criar mais um! Eu não agüento mais esse clima pesado em cada data festiva, em cada aniversário! Eu conheço bem vocês dois, vão resolver isso aqui nem que seja a última coisa que eu faça. Ou eu vou sair, hein, pego o carro e vou embora daqui e nenhum de vocês vai me ver ou falar comigo de novo, nunca mais, ouviram bem?
O irmão de barba riu.
– Que foi, acha que é uma piada?
– Não. Mas você pareceu muito a minha mãe falando agora.
– Esqueci que ela fazia isso – acrescentou o outro – ficava dizendo que ia embora quando a gente brigava. Mas nunca ia, nunca foi.
– Você sempre começava a chorar e ela ficava do seu lado...
Mais um relâmpago refletiu nas janelas da casa de praia. A coruja entocou-se junto aos seus ovos no terreno baldio da frente. O vento acelerou.
– Ela sempre dizia que você era mais parecido com ela – disse o da regata.
– Mas era de você que ela gostava mais.
– Eu acho que não – atalhou a mulher – Só porque ela o protegia mais, não significa que gostava mais dele. Eu concordo com ele, você é muito mais parecido com a mãe de vocês, mais independente. Você é áries, né? A mãe de vocês também era de áries. Eu também sou, é por isso que a gente se dá bem. Seu irmão é de peixes, isso é uma coisa que nós temos em comum: nenhum de nós resiste a um charme de peixes. – Ela passou de leve a mão no rosto do marido, o irmão de regata.
– Mas você bem que gostava era dele... – disse o da regata num tom meio amargo. A esposa, de leve ofendida, afetou horror e resetou a mão.
– Como assim? Como que você me diz uma coisa dessas?
– Todo mundo sabe. – Ele riu, melancólico – até tentaram me alertar, veja só. No dia do casamento, um primo veio me dizer que achava, veio me perguntar se eu não duvidava de que era dele que você realmente gostava, se não tava casando comigo como prêmio de consolação...
A mão que acariciava tão logo se transfigurou em tapa que mesmo o irmão de barba sentiu como se tivesse sido atacado no próprio rosto.
– Às vezes... – a mulher não terminou a frase. Desta vez foi o rouco barulho de um trovão que estourou ao longe, fazendo os sapos coaxarem mais alto.
– Não é impossível, sabe... – disse o irmão esbofeteado esfregando o rosto, para surpresa do outro irmão, aproveitado o ensejo para fugir do conflito que ele mesmo causara – Não é impossível chover sapos. Acontece com freqüência, onde tem furacões e tal.
– Como naquele filme... – disse a mulher desviando os olhos vermelhos dos dois irmãos. O de barba olhava para o casal estupefato, o irmão e a cunhada, o diálogo tornando-se surreal.
– Sim. Os ventos levantam os bichos e chovem partes deles congeladas.
– Que nojo... – disse a mulher franzindo o rosto e encolhendo-se num arrepio, não se sabe se de frio, pelo tempo que virava, ou se de repugnância.
– E que fim leva a história dos sapos afinal? – quis saber ela, esfregando os braços.
– Digamos que... Choveu sapos naquele dia.
– Na minha cama. – o de barba sorria desgostoso; retornava ao diálogo através da má lembrança.
– Era uma brincadeira apenas. Boba, eu sei, mas era brincadeira. Não foi para todo aquele escândalo, voltando para casa no mesmo dia, se recusando a entrar no mesmo carro que eu.
– Cara, odiei você mais naquele dia do que nunca serei capaz de odiar alguém, você me conhecia muito bem, sabia o horror que eu tinha, sempre tive, de anfíbios de qualquer espécie. Mas não foi só isso, você leu coisas que não tinha que ler naquele dia, disso você não se lembra? E espalhou para a corja dos seus amigos. Riram de mim como um bando de bestas, mas grande coisa, hoje eu vejo que aquilo não foi grande coisa. Mas à época foi horrível.
– Eu não sabia disso – disse a mulher.
– E isso que você se considera minha melhor amiga.
O irmão de regata fechou a cara, detestava aquela história de melhor amiga, mais de uma vez brigaram, ele e a mulher, por causa dessa estúpida cumplicidade que ela tinha com o irmão desde a adolescência. Como se adivinhasse o pensamento do irmão, o de barba falou:
– Você sabe, não sabe, que entre eu e ela...? Quero dizer, você entende, não entende?
– Eu tento entender. Aliás, eu sei que é impossível, eu sei que nunca... Bom, aceitar uma coisa e outra foram os dois maiores problemas da minha vida, você sabe bem disso. Engraçado você estar no centro dos dois.
– Não posso fazer muito a respeito. Dizer que sinto muito?
– Não me convence.
– Porque eu não sinto. Não sinto por ser eu mesmo, não sinto por ser amigo da sua esposa. O único problema que eu tenho faleceu.
Do outro lado da rua, a coruja piou de dentro do ninho.
– Se faleceu, – disse a mulher – se faleceu, então está morto. Enterrado. Não há mais que se preocupar.
– Aí é que você se engana – respondeu o da barba, os olhos brilhantes – os problemas tem vida útil para serem resolvidos, depois de falecidos e enterrados, então não é mais possível matá-los, é se acostumar com eles até a nossa própria morte.
– Sempre dramático! – o de regata virou os olhos.
– Eu não sei que ainda estou fazendo que não fui dormir, boa noite pro casal.
– Espera... – quis dizer a mulher, mas, nesse mesmo instante, um objeto maciço caiu com força no telhado da varanda, barulho forte de pancada, e escorregou para o chão num reflexo verde. Os três calaram-se e baixaram a cabeça para procurar na grama do que se tratava o objeto cadente. Nisso a chuva começou a cair.

Domingo

– Olha a chuva, mãe!
– Que é que há para se ver na chuva, menino?
– Que chove.
A mãe esfregava roupa num tanque, o menino, costas apoiadas na máquina de lavar, segurava um livro, mas prestava mais atenção no barulho de chuva, a luz da cozinha-área-de-serviço acesa, embora fossem quatro horas da tarde.
– Levanta daí menino, vai pegar uma gripe.
– Vou nada, tá bom aqui, mãe.
– Tá úmido aí, menino! Não tem nada que fazer lá dentro? Onde já se viu, lugar de criança não é aqui perto do tanque não.
– Mas é que eu gosto tanto de ler com o barulho da máquina de lavar...
A mãe sorriu, “esse menino não bate bem”.
– Mãe, a senhora acha que pode cair raio aqui em casa?
– Raio, menino, que coisa para se pensar. Não cai raio nenhum, que Santa Bárbara não deixa.
– Mas, mãe, caiu raio na casa da Tatiana, Santa Bárbara tava aonde?
– Deixa de ser besta menino, deixa. Sabe a igreja no fim da rua? Tem pára-raio lá, não tem como cair raio na rua inteira.
– Ah... Mas a senhora tem certeza, mãe?
– Claro menino. Anda, aproveita que tá aqui e me ajuda a tirar essa roupa do balde.
– Mãe... O que a senhora está fazendo lavando roupa se está chovendo?
– Você hoje está impossível, menino – os dois seguravam o enorme balde um de cada lado, despejando a água turva no tanque – Tenho tempo de lavar durante a semana, tenho? Se eu não lavo roupa hoje, não lavo mais até o domingo que vem. Mais tarde a gente pega a roupa limpa toda e leva na casa da Dona Mariana, que tem máquina de secar.
– Ah, mãe, eu não quero ir na casa da Dona Mariana.
– Por que, menino? Uma senhora tão boazinha, trata você tão bem.
– Mas o marido dela tá sempre de porre.
– Menino! – Ela largou a roupa que esfregava e aproveitou para afastar uma mecha de cabelo do rosto. – Não fala assim do Seu Timóteo, menino, que coisa mais feia. Ele é padrinho da sua irmã.
O menino fez uma careta.
– Eu não gosto dele, mãe. A Adriana falou que ele sempre mexe com as amigas dela, detesto aquele velho.
– Não se fala assim das pessoas... Mas quando que a Adriana disse isso?
– Sempre diz, sempre que a Emília vem brincar aqui e ela me obriga a brincar com elas. Detesto a Emília também.
– Tadinha da sua irmã.
O menino terminou de despejar o balde no ralo.
– Mãe, é verdade o que a Emília falou, que ela é rica e a gente é pobre?
– Ela falou isso? Que menina boba.
– Falou sim, falou que a gente só pediu pro Seu Timóteo ser padrinho da Adriana porque eles são ricos, que a gente sempre precisa de alguém rico pra pedir favor.
A Mãe franziu a testa. – Que menina bobalhona essa sua amiga Emília.
A máquina de lavar emitiu um forte estalo e parou de trabalhar subitamente. Funcionava meio mal agora. Por um instante, foi audível apenas o barulho da chuva batendo no telhado de zinco da cozinha. Logo a máquina normalizou-se. O menino sentou-se novamente no chão, retomando o livro.
– A Emília disse que a Adriana vai ser rica também um dia. E que eu vou ser sempre pobre. Por isso que ela gosta da Adriana e não gosta de mim.
– Bobagem, menino, bobagem. Eu tenho tanto que fazer e você vem aqui falar de bobagem? Não tem lição pra fazer, não?
– Tô fazendo, mãe, tenho que ler esse livro pra escola.
– Então lê quietinho e deixa a mãe terminar a roupa. Adriana! – A mulher gritou para dentro – A sua irmã tá vendo televisão?
– Não sei, não sou babá dela. Acho que ela saiu pra brincar.
– Nesse tempo? Depois não me vem reclamar de dor de garganta. Você também não, sentado aí no frio. Que é que eu fiz para merecer isto?
O menino emburrou. Continuou a leitura do livro, mas não era capaz de se concentrar. Aquela leitura era muito chata.
– Mãe?
– Que foi, menino?
Ele não respondeu. A mãe continuava esfregando, esfregando.
– Mãe...
Foi a vez da mulher ficar em silêncio.
– Mãe!
– Que foi menino? – Ela parou de esfregar para olhar para o filho.
– Agora esqueci o que ia dizer.
– Era mentira então.
– Não era...
Seguiram quietos por mais algum tempo. A mãe percebeu a inquietação do filho, que baixava a cabeça para o livro sem prestar atenção e olhava em seguida para a basculante encardida, por onde entrava quase nenhuma luz naquele dia de chuva.
– Mãe, por que é que a senhora não fala nada?
– Como assim, menino? Porque eu não tenho nada para falar! Sábio é quem tem alguma coisa que falar, bobalhão é quem tem que falar alguma coisa.
– Eu gosto de passar o dia aqui com a senhora, mãe.
O telefone tocou lá na sala. O menino largou o livro e saiu para atendê-lo num pulo.
A mãe largou a roupa no tanque e enxugou as mãos na blusa. Juntou do chão o livro que o filho estivera lendo e leu o título enquanto passava a mão sobre a testa, o suor de dissipando na mão gelada de água do tanque. Lembrava de ter lido aquele romance havia muito tempo, quando ela mesma estava na escola. Mas será que lera mesmo? Não lembrava de nada da história, como se tivesse passado por ela muito rápido, sem assimilar coisa alguma. De repente, olhou para o relógio na parede e assustou-se, o final de semana passara muito rápido. Largou o livro num canto e foi ver com quem o filho falava ao telefone, de repente era uma de suas patroas para dar algum aviso e não confiava em criança para dar recados.
A máquina de lavar continuou zunindo, o barulho da chuva de fundo: orquestra dominical.

O Duplo Espreitado

“Cara, detesto gente que não atualiza blog!”.
– Este sou eu reclamando. Espera. – Levou a mão ao ombro da moça para mantê-la agachada, ainda que ela não houvesse feito nenhum sinal de se erguer, como se adivinhasse.
“Cara, um mês inteiro sem postar, que é que esse rapaz anda fazendo?”
O homem que espreitavam deixou o escritório. Desta vez, a menina, escondida atrás de um móvel de madeira ao lado do amigo, chegou a esticar as pernas, mas ele, que era idêntico ao homem que acabara de deixar a sala, segurou-a pelo ombro, puxando-a para baixo, bem a tempo – o espreitado retornava. Suspenderam a respiração por um instante. O espreitado deixou novamente o escritório.
– Agora sim – disse o rapaz à amiga. Levantaram-se os dois. Foram direto ao computador. A menina plugou um pen drive da parte dianteira do PC, o rapaz procurava por alguma coisa na tela avidamente, passava os olhos muito rápido pelos arquivos, com medo de não prestar atenção no que era importante. Pouco tempo, pouco tempo.
– Eu já estou voltando, – disse ele exasperado à garota que o acompanhava – se der para não fazer, seria ótimo... – engoliu a saliva desgostoso, levando a mão à testa – Tudo certo com o pen drive?
– Sim, pode gravar.
Levou pouco mais de alguns segundos. Quando já se encaminhavam para a janela por onde entraram, porém, o homem que espreitavam voltou.
– Mas que...
Encararam-se os dois, o mesmo olhar estupefato, a reprodução perfeita um do outro. Pela primeira vez eram capazes de ver, por si mesmos, o que só podiam se contentar em ter como uma idéia, através de imagens, às vezes mais fiéis, às vezes menos, dependendo do ângulo da lente, da luz atrás do espelho, do ânimo do retratista. Congelaram diante do espetáculo mútuo.
A menina, alheia à estupidificação dos correspondentes, pensou rápido: sabia já o que tinha feito, porque o companheiro lhe contara. Agarrou a luminária sobre a mesa e desferiu um golpe violento na testa do espreitado, que tombou inerte.
– Droga! – exclamou o amigo dela, o que ficara de pé, levando a mão ao machucado na testa, ainda não cicatrizado. Com tudo o que acontecera, havia esquecido que ainda doía.
– Achei que dava para pular essa parte...
– Não deu...
– Então... Será que..?
– Agora só indo até o fim para saber.
Ela adiantou-se para a janela. Olhou para trás ao pressentir que o companheiro não a seguia.
– Anda logo!
– Só um momento!
Agachou-se ao lado do homem caído no chão, de espreitado a abatido, e logo espreitador novamente, como ele bem sabia. Suspirou. Então era essa a expressão que tinha enquanto dormia. Seria incapaz de imaginar-se assim tão sereno. Delicadamente, passou os dedos sobre a testa do homem desmaiado – gostava tanto que lhe acariciassem a testa, mas nunca lhe adivinhavam esse gosto. O seu eu idêntico inconsciente reagiu ao toque, ele quase caiu para trás.
– Anda logo! – ela repetiu raivosa entre os dentes.
Deixou-se tombado, o outro, foi correndo à janela. Tinha ainda muito que fazer. Olhou pela última vez para aquele escritório. Saudoso. Finalmente, foi-se embora pela janela atrás da amiga, que já estava lá adiante no estacionamento, mente ocupada com a próxima etapa.

Felicidade

Eu sou esposa, mãe e profissional. Como mulher, busco sempre o melhor para mim e para minha família. Não posso deixar de considerar essa história de família um apelo, e dos bem fracos. Família para mim, o que é família, senão embuste? É carga. É uma companhia inteira de atores ruins que sufoca. Eu que não sou diva nem sei se poderia ser, tolhida que fui pela minha família. Busco sempre o melhor para mim e para minha família, por isso tenho sempre Felicidade ao meu lado.

Sou mulher. Mãe esposa profissional. Como mulher – mãe, esposa e profissional – uso Felicidade. Compro Felicidade todos os dias, no supermercado, na farmácia e até na banca de revista. Toda dona-de-casa usa Felicidade. Que você está fazendo que ainda não comprou a sua?

Sou mãe, sim, privilégio insustentável, mas não tenho meus filhos ao meu lado. Meu cachê mal dá para mim, vou lá manter meus filhos. Dra. Suzana também é de opinião de que é melhor que eu os deixe com o pai por enquanto, lá eles têm Felicidade todos os dias, nas horas certas. Eu devia ter sido advogada. Minha mãe insistiu tanto que eu fosse advogada, queria tanto, fazia planos. Só buscava o melhor para ela e para a família, mulher que era. Ela também tinha Felicidade sempre ao seu lado. Até quando se deu um tiro bem no meio do peito por causa do câncer, a Felicidade estava sobre a mesa de cabeceira, recém aberta, comprada naquela manhã mesmo. Não chegou a ser consumida até o final. Nunca uso Felicidade até o fim, quando está acabando uma, sempre abro outra.

Meu pai foi quem ficou abatido nesse dia, muito mais do que se poderia prever. Meu pai era estranho, não usava Felicidade: achava supérfluo. Passou anos abatido depois da morte da minha mãe, descontando só em mim, filha única, todas as desgentilezas que distribuía antes igualmente entre as duas, pobre coitado, pelo que podia esperar agora? Que eu vá busca-lo, decerto, lá no asilo em que o deixei, ele sem saber quem eu era direito, mas com memória boa para humilhações, continua bom em humilhar, mesmo perto do fim. Da última vez em que o visitei, perguntou o que era mesmo que eu fazia da vida. Abri um largo sorriso, fotográfico mesmo. Peguei sua mão. Falei sobre minha bem sucedida carreira de atriz, a grande casa à beira-mar, as crianças, os cachorros, que lindos eram meus cachorros!, e tão inteligentes. Meus filhos também eram inteligentes: precisava ver o mais velho, o mais velho se chama Humberto, como o avô! Falei também, não pude deixar de falar, do meu dedicado marido, que me adora mais do que tudo. “O senhor sabe”, eu dizia, “sabe que outro dia meu marido falou brincando – ele sempre fala as verdades brincando – falou brincando que era capaz de fazer o que eu bem mandasse ele fazer, veja só! Que não havia lei natural nem legislada que imperasse acima da minha vontade, acima da magnanimidade absoluta dos meus caprichos; Deus, esse Deus em que acreditamos tanto, fala por mim, chega mesmo a morar na minha voz, o senhor veja só que heresia, pai!”.

“Eu mandei ele parar de dizer asneiras“, eu continuava contente, “parar com as bobagens, que aquilo virava praga, e se um dia eu mandasse ele se matar, se atirar da sacada do quarto andar da nossa linda casa branca que crescia da areia da praia com floreios cor-de-rosa nas janelas e nas portas, e se eu mando você se matar? Sabe o que ele respondeu, pai, sabe? Eu me mato. Me mato, mato meus filhos, mato quem for, é só você me mandar – ‘assassine!’ – que eu mato”. Meu pai senil suspirou um “puta mentirosa como a mãe” que eu sequer ouvi. Tão baixinho ele me xingou, tão sem forças, mas eu nem precisava que ele emitisse nenhum som, eu já tenho a prática sabe, eu sei quando ele me humilha pelo olhar, pelo ar abrasador que desprende da pele dele, como se a palma da mão grossa viesse firme de encontro a meu orgulho. O orgulho a gente guarda no rosto.

Deixei-o neste dia para sempre, mas não se pode dizer que não o amo, o amo tanto que nunca deixei atrasar uma mensalidade do asilo. Uma coisa não posso reclamar do meu pai, ele nunca me deixou faltar nada, sempre pagou tudo muito em dia. Deixava de beber com os amigos, de jogar no bicho, ou no bocha, e no que mais que ele poderia gostar de fazer, deixava tudo isso de lado para botar comida em casa, comida, água, luz. Só não admitia gastar com Felicidade, Felicidade minha mãe é que comprava escondida e dividíamos a Felicidade entre nós depois que ele saía, descartando a embalagem no latão de lixo da rua para ele nem desconfiar. Não deixo faltar nada a ele também na velhice, pago suas despesas em dia, em detrimento das minhas despesas até, em detrimento da pensão que eu deveria pagar aos meus filhos, mas que o meu ex-marido recusa, graças a Deus, por orgulho. Mas compro Felicidade para eles quando a gente sai, final de semana sim, final de semana não, disso eu não abro mão. Não deixo que eles me visitem na minha casa, entretanto. Busco sempre o melhor para minha família, por isso eles vivem com o pai. O mais velho, o Humberto, tinha seus onze anos à época do divórcio, meu adorado primogênito, nunca pude esconder nada dele. Tão parecido comigo! Não queria morar com o pai, “mãezinha, me deixa ficar aqui com a senhora e com o tio”, “não, meu filho, é melhor você morar com o papai, não chora que você vai ficar sem Felicidade se chorar”. O “tio” não queria que ele ficasse, eu até cheguei a pedir, ele se exaltou muito. Quando o “tio” me abandonou, quis buscar meu primogênito, “ainda quer ficar com a mãezinha?”, mas não tive coragem. Ele já estava grande, grande, já ganhava seu dinheiro e comprava sua própria Felicidade se quisesse.

Dinheiro. Emprego. Quando o “tio” foi embora, a mãe teve que ver emprego, meu filho, a mãe não era mais esposa, agora tinha que ser mais profissional do que nunca. Retomei a carreira de atriz, porque outra coisa não podia fazer.

Engraçado que no dia em que deixei meu pai para sempre, voltei para meu quarto-e-sala no centro e o telefone encardido tocou, era da produtora. Gravo o comercial amanhã, quem diria, logo eu, nessa altura da vida, mulher-propaganda da Felicidade. Precisavam de uma atriz madura, uma mulher – mãe, esposa, profissional.

Fiquei lembrando de um dia das mães na escola, eu ainda casada, as crianças todas enfileiradas recitando um poema. Depois iam falando: “minha mãe é dos correios, minha mãe dirige táxi, minha mãe é policial”. Chegou a vez do Humberto, ele todo orgulhoso se empertigou e disse “mamãe é atriz, vai ser famosa!”. Tão famosa, a mãe dele, larguei o grupo de teatro quando casei, tentei ser funcionária do banco, mas não podia, não podia. Decidi ser atriz em casa, atuava quando preparava o café, exercitava minha expressão corporal na faxina, fazia de servir um jantar um grande ato que arrancava lágrimas dos convidados. Era a estrela da farsa da vida doméstica, colhendo os louros da fama de boa esposa e boa mãe – excelente profissional – mas esperando sempre pelo dia em que a peça sairia de cartaz, porque sabia que não durava para sempre. Ser feliz não é saber que tudo acaba bem, mas saber que tudo, por pior que seja, acaba. Felicidade sempre subindo de preço, cada vez mais cara – onde é que esse país vai parar?

Foi tão dolorosa a separação dos meus filhos, rasgou-se o cordão à pistola, minhas entranhas rebentadas por dentro. Fui aos especialistas, tomei remédios. Dra. Suzana foi minha amiga confidente. Voltei à forma finalmente quando deixei meu pai no asilo, consegui o comercial no telefonema da produtora – eu busco sempre o melhor para minha família, mas família é estorvo. Amanhã gravamos, o produtor me ligou hoje, senhor simpático. Já fomos tomar um chope. Tão atraente! Barba grisalha muito bem aparada e cheira bem, como cheira bem, como um lorde inglês. Sua esposa tem muita sorte, não é por nada que escolhe tão bem as roupas, o perfume dele. Tudo muito distinto.

Quando saímos, mal uso batom, mal me perfumo. Sinto que não tenho direito de macular aquele corpo sagrado de marido com minha astúcia de adúltera, procuro o zelo da esposa, da mãe, da profissional – da mulher. Foi a mulher quem conseguiu esse papel nesse comercial. Quando ele veio aqui da última vez, recitei meu texto para ele, ele achou minha entonação bastante boa, bastante natural, bastante sincera: sou mãe, esposa e profissional. No meu dia-a-dia, busco sempre o melhor para mim e para minha família. É por isso que eu uso Felicidade. Faça como eu e tenha Felicidade sempre ao seu lado. Felicidade – quem ama usa!

Um Cobertor

Encontrava-se numa ânsia de acabar com o mundo. Nem sabia por que se sentia assim, só tinha vontade de que o tempo passasse bem depressa, mesmo que não houvesse perspectiva de nada dali a duas horas, nem dali a três. Era acabar o dia, dormir, começar outro. Não tinha idéia do que lhe produzia aquela ansiedade, o pior já acontecera, passava das seis da tarde e o telefone não tocara. Não tocaria mais. O silêncio do telefone era uma sentença capital, transitada em julgado, sem possibilidade de recurso. Estava atônita, sim, e custaria ainda a se resignar, conhecia-se bem.

Deixou o olhar cair sobre o aparelho com raiva. Raiva daquele aparelho vermelho, raiva do esmalte vermelho, do casaco vermelho que ela usara tão em vão, tão ridículo. Sentia raiva e se sentia ridícula, ingênua, passada para trás.

Levantou-se da poltrona, sentiu frio. Apanhou um livro da mesa de centro e sentou-se novamente. Passou o objeto entre os dedos, duzentas páginas que não significavam nada, vinte anos que não significavam nada. Não poderia ler, não estava para leituras. Mesmo assim, insistiu. Abriu o livro na primeira página, irritou-se com aquele ritual tão convencional, fechou o livro e o abriu de novo bem na metade, passando os olhos velozes por meia dúzia de palavras que leu sem compreender. Fechou novamente o volume com violência – “ora, tem até graça”.

Decidiu que não podia ficar sentada. Levantou-se e em seguida esticou o corpo para erguer um cobertor, atirado ao tapete num acesso de impaciência ainda uma meia hora antes. Enrolou-se na coberta dos pés à cabeça, prendeu a respiração, desejou arduamente, como se fosse possível, desaparecer naquele tecido grosso tão macio. Como o cobertor a compreendia bem, era só dele que ela precisava naquele instante, de sua proteção, de seu isolamento.

Jogou-se no tapete toda enrolada, como uma lagarta num casulo, e não conteve um choro rasgado. Chorava e sentia-se ainda mais patética, irritante, fútil, onde já se viu chorar por tamanha bobagem, o que era ele afinal, senão um cara como outros tantos milhões de caras naquela cidade cuja existência não lhe era sequer conhecida até dois dias antes. A existência dele ainda não lhe dizia respeito, na verdade. Era uma idiota, e quanto mais se convencia de que era uma idiota, porque aquela cena dramática para platéia nenhuma não passava de idiotice, mais se sentia incapaz de conter as lágrimas; sofria a si mesma, para depois se repreender e sofrer mais com isso, um sistema perpétuo perfeito.

Perfeito era ele.

Conteve finalmente as lágrimas e sentiu-se confusa. O que teria dito de errado? Revisou as palavras uma a uma, porque o registro daquele encontro era nítido como um filme em frente a seus olhos. Era em vão, era em vão, repetia balbuciando, sem muita consciência disto, porque a mente ocupava-se de reviver o momento, o encontro um dia antes. Viram-se pela primeira vez num terraço. Ela na verdade já o tinha visto duas vezes: a primeira fora na festa, horas antes – horas, foram horas entre a festa e o encontro, quem poderia dizer! Ele nem reparara nela naquela festa, ou era um mestre da indiferença fingida. Na segunda vez, ela o vira na iminência do encontro, porque quando ele passou rápido por ela antes de entrar no terraço, não a viu. Mas ela já estava lá, encolhida num canto, sentindo-se como se ele não fosse aparecer mais, mas então ele veio e ela sentiu-se como que renascida, contou uns cinco minutos e saiu para o terraço atrás dele. Justamente o sentimento oposto da tarde chuvosa que agora morria, morria despercebida, sem fazer escurecer mais o céu do que a chuva já havia feito. Só o que escurecia era o coração de Rosana. O coração e o amor próprio. Envolta no cobertor, tudo era só escuro. Sentiu vontade de chorar mais, mas conteve-se. Permaneceu sem se mover por não se sabe quanto tempo, como se sua existência fosse suspensa, como se o mundo fosse esperá-la enquanto ela deixava de existir por um instante, um infinito instante que só fazia sentido para ela. Suspirou. Sentia o rosto quente, o suor escorrendo entre a testa e o cobertor. A impaciência voltou com força, a ânsia, franziu a testa e estalou a língua – “que droga!”, exclamou, “que droga!”. Ele já havia partido àquela hora, certamente para sempre.

Entretanto, subitamente, rasgando o barulho da chuva no meio e fazendo o coração dela convulsionar, o telefone vermelho tocou.

Ressaca de vinho ruim

Chove ouro baço, mas não no lá-fora...É em mim...Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e tôda ela escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...
(F. P.)

Meu holiday começou tão bem! A cabeça explodia. Sobre a mesa, uma bandeja de frutas restava. Sozinha. Me trouxeram uma caneca de leite com achocolatado, thanks god!, honey, you’re so Nice. Era o que eu precisava para vomitar, na verdade, mas agora eu me sinto tão bem. Quase esqueço que não é verão e o dia lá fora tá um asshole. Saca, quando eu lavantar, gosh, eu juro que um dia eu levanto, quando eu levantar eu vou te dar é um beijo, porque tu merece, honey, sim. Agora eu preciso dormir. Sabe, eu durmo e sonho com diversas coisas, você inclusive. Quase não penso muito enquanto sonho, mas sabe como é ressaca moral, é assim que nem um passarinho, melhor, que nem uma gaivota – gaivotas comem lixo, não é mesmo?

Eu poderia me sentir mal pelo que ele sentiu ontem, mas quem disse que eu me importo? Gosto de pensar que eu não estava lá mesmo. Eu não enxergo, onde estão meus óculos, hon?, ah, sim agora eu me lembro bem. Sabe, é engraçado. Prefiro não pensar nisso agora, tenho tanto que fazer e já passa das três, não é mesmo? É impressão minha ou eu cancelei um compromisso à uma hora?

Como chove, não é mesmo? Lembro de um tempo em que não chovia. Eu ia à escola todos os dias, acho mesmo que nos feriados eu ia prescola, lembra? A gente tinha uma professora que era bem estranha, não, na verdade era ela normal demais e isso é que era estranho, sabe, honey, eu não gosto de gente normal demais. Se eu quisesse gente normal em volta de mim comprava um gato pra se esfregar nos meus pés e um televisor muito bom, desses novos, e assinava uma TV a cabo, sabe? Não, gente normal tem demais no mundo, a vida é uma só, quero pessoas interessantes perto de mim. Então, como eu ia dizendo, a gente tinha uma professora, lembra? Era só uma naquele tempo, nem esperavam da gente essas historinhas de especialização, isso não existia, gosh, eu juro por deus que não existia. Enfim, tinha uma professora, sim, mas não é dela que eu quero falar, quero falar da mulher que a substituiu, lembra? Foi uma vez só. Sim, eu me lembro. Ela mandou fazer um texto assim: o título era “eu sou gaúcho”. Que coisa idiota, não é mesmo?, agora eu posso ver. Sabe, ela assustou mesmo a gente, mandou acabar o texto antes do recreio, que quem não acabasse não comia! Imagina! Não queria que a gente comesse, honey! Para mim agora tanto faz, mas eu ainda penso no que fazia aquela velha pensar daquele jeito, por que deixar as crianças sem comer, né? Sabe, é fácil assustar uma criança.

Sabe por que a gente gosta da nossa mãe, dear?, é porque ela cozinha, cara, é por isso: ela nos alimenta, nós amamos a mãe porque ela é a primeira a nos alimentar, é uma coisa de memória instintiva isso, existe isso de memória instintiva?, você que faz psico que me diga. Ou pedagogia. Minha mãe era pedagoga, minha mãe é pedagoga, por que é que a gente tem essa mania de referir-se a nossos pais no passado, nossos pais estão vivos, eles tão aí do nosso lado, cara, posso te garantir. Pois bem, minha mãe é pedagoga. E eu amo a minha mãe, cara. E ela me alimentou. E aquela mulher que substitui a professora, como tudo é claro agora!, aquela mulher não tinha mãe, aquela mulher não foi alimentada, nem era pedagoga, por isso que ela queria nos privar disso, my dear, é muito lógico, não podemos nem culpá-la, só podemos lamentar por ela, chica.

Então, ela deixou metade das pessoas sem merenda, lembra? Eu fui um desses. Pior é que eu quase acabei o texto em tempo, cara, ia acabar bem na hora do recreio, mas daí teve um cara que entregou logo antes de mim, minutos antes, segundos!, eu tava quase me levantando pra entregar, honey, daí ele entregou e ela esbravejou, mulher dragão, cara, horrível que era: lembro do grito, lembro da cara vermelha do demônio, cara, sim, pra gente ela era nada senão o demônio. Ela disse assim “MAS O QUE É ISSO, VOCÊ É BURRO”, sim, ela falou em maiúsculas, cara, “MAS O QUE É ISSO, VOCÊ ESCREVEU UM TEXTO CHAMADO ‘EU SOU GAÚCHO’ QUE NEM É SOBRE VOCÊ?”. Gente, como aquela mulher era bruta, uma verdadeira embrutecida pela falta de mãe dela, cara, só pode ser – desde quando, me diga, desde quando o título do texto implica a pessoa do texto, cara?, que mulher asquerosa, mesquinha, mulher-bagre, bruxa decrépita, cara, apodrecida por dentro de fazer isso com criança! E meu texto era em terceira pessoa, cara! Como eu queria voltar lá, gosh, eu queria, ia fazer um texto em quarta pessoa e ia ver o que é que ela ia dizer. Quebrava a cara dela, cara, ou melhor, jogava um balde d’água, que nem a Bruxa do Oeste, cara, como eu tinha medo da mulher. O medo não tá com nada, cara.

Honey, você se ofende se eu te chamo de cara? É que é o meu jeito, sabe, me exalto assim, só um pouco, e já perco a elegância, dear, já perco a polidez.

Mas não tá claro agora, chica?, aquela mulher não foi alimentada. Como é verdade isso! Quanta gente mal alimentada tem por aí, não é verdade, cara – ai, olhaí o cara outra vez, tenho que parar com isso, te considero, dear, te considero bastante. Mas que eu queria dizer era isso mesmo, sabe, como tem gente que não foi alimentada.

Sabe, minha mãe, pedagoga, eu amo minha mãe, cherie, mas ela pensa que amor é dinheiro. Não tão assim, é menos trágico, ela me deu carinho, me deu atenção, mas na cabeça dela amar a família não é senão se sacrificar pra sustentá-la. Daí eu te digo, darling, tem gente que não é alimentada de comida, tem gente que não é alimentada de arte. Arte é amor, cara. O que é a estética senão criar o belo, e o que é o belo senão aquilo que a gente é capaz de amar? É assim que o feio vira belo, honey, todo mundo sabe disso desde pequeno. Minha mãe me deu atenção e conseguiu me dar arte, cara, ela conseguiu! (Prometo que paro já de dizer cara.) Ela conseguiu, ela que passou fome de arte, e agora eu sei que as pessoas precisam de comida, mas elas precisam ser alimentadas de arte também, sweetie, porque quem não o é fica que nem a minha avó, que não alimentou minha mãe com arte, que nem a mulher-bagre, fazendo aquilo com criança, porque não compreende arte, entende? Minha mãe era boa, ela não recebeu amor, honey, mas ela soube me dar; agora ela não compreende, dear, não compreende a arte que ela mesma me deu, a minha arte, a minha necessidade de arte, a necessidade de alimentar meus filhos com arte, saca?

Ah, ainda chove, honey. Chove ouro baço, lá fora e aqui dentro, e a hora é absurda, mas nos pega de jeito. Você dá licença deu ir num compromisso, meu amor, que eu já cancelei um hoje? Vou sair na chuva, mas te prometo que pego um táxi para ti. Você me ama, honey? Eu sei que sim, se não soubesse não pegava um táxi, ia a pé pra casa e não me importava comigo mesmo. Sabe que se eu me importo comigo é porque estou me preocupando de ti, né?, porque tu me ama. E eu sei disso. O resto, dear, é ressaca. Ressaca moral, ressaca de vinho ruim.

Sordidez

A sordidez é um inseto cuja picada é boa, boa demais para fazer bem. A sordidez me pegou desprevenido outro dia, na rua, à noite. Disse coisas que eu não devia para uma certa pessoa a quem eu devia minha existência, a doce Vanessa. Ela me esmagou o inseto da sordidez no meu pescoço. Enojei-me, arrependi-me, mas tarde já era. Sozinho, vaguei pela rua escura e fria, até que entrei nesse bar.

Não conhecia ninguém. Era um lugar sujo e mal iluminado. Não precisava já ter estado ali para conhecê-lo profundamente, porque igual àquele havia centenas, dezenas dos quais que eu já havia freqüentado só no bairro onde moro. Passei pelo balcão e pedi vodka, fui ao banheiro e quando voltei fui servido na mesa mais ao canto, junto a uma janela. Por ali eu via, não muito bem, alguns vultos que passavam pelo inverno que fazia lá fora. Ali dentro eu sentia calor.

Meu copo já havia sido esvaziado e enchido de novo uma boa meia dúzia de vezes quando entrou um casal e ocupou a mesa ao lado. O homem sentou-se de frente para mim, rindo e falando alto. A mulher era quieta. O mesmo homem que me servia as vodkas serviu uma taça de vinho a ela e algo que eu não pude escolher se era uísque ou conhaque para ele. Ela levantou-se de repente, sem tocar na taça. Ele a segurou pelo braço de forma rude, mas a deixou ir depois de algumas palavras em voz baixa. Uma vez sozinho, o homem encarou-me. Sorriu e disse qualquer coisa que eu não compreendi, não escuto muito bem, mesmo sóbrio. Eu sorri e concordei. Ele irritou-se. Levantou e sentou novamente ao meu lado. Perguntou se eu a queria, a mulher que o acompanhava. Eu não entendi e perguntei em que sentido. Ele riu. Quando ela voltou, levantou-se e antes que ela tomasse de volta seu lugar à mesa ao lado da minha, disse qualquer coisa ao seu ouvido que a fez pensar e decidir sentar-se ao meu lado.

Ela me pediu um gim. Chamava-me de “meu bem”. O homem nos olhou da outra mesa e sorriu, indo sentar-se ao balcão do bar em seguida. Eu sorri e expliquei que não estava entendendo bem o que se passava. Ela perguntou se eu queria sair dali. Eu quis saber o que o homem que a acompanhava acharia disso. Ela riu, mostrando os dentes amarelos, mas perfeitamente colocados. Ele nem vai perceber, foi o que ela me respondeu.

Deixei uma gorjeta ao garçom embaixo dos copos de gim pela metade e saí de braços dados com ela para a madrugada muito fria. O homem que estava com ela sequer notou que havíamos saído, estava de costas para a porta.

Eu perguntei aonde ela morava, ela não respondeu, perguntando se eu não preferia ir para a minha casa. Pedi desculpas e disse que não poderia, que meu avô dormia cedo. Ela consentiu que fôssemos de táxi para a casa dela, cujo endereço revelou, ficava "perto da Azenha", que não era tão longe afinal. Naquele momento eu hesitei, intuindo tratar'se de uma atitude tola sair dali de perto da minha casa, da vizinhança boêmia que eu conhecia muito bem, para meter-me na casa de uma estranha, que primeiro estava acompanhanda, mas em seguida bebia gim comigo, arreganhando grandes dentes amareos. Ela insistiu docemente. Não era feia, afinal. Ainda assim não pôde me convencer, eu a coloquei num táxi sozinha, argumentando gentilmente muito cansaço, e voltei a pé para a casa, não sem deixar qualquer quantia com ela (o que eu teria achado um exagero ofensivo se não tivesse tomado tantas doses de destilados). Dormi um sono inquieto, sonhei que saía pela janela flutuando, mas caía ao avistar a primeira árvore. Lá fora amanhecia e subia uma neblina que cobriu minha rua toda.

Acordei muito tarde. Fui à casa da mulher que eu amava, para me desculpar, mas ela não estava. Saiu com os pais para a igreja. Atendeu-me a irmã esbaforida, que depois eu soube que estava com um rapaz com quem se encontrava sempre que a família estava na igreja e que a abandonou quando soube que esperava um filho dele. Teria não mais que quinze anos quando desse episódio.

Tive o cuidado de parar na padaria e comprar um bolo do gosto de meu avô antes de voltar para a casa. Todas as comadres do prédio me esperavam na sala de estar (uma delas eventualmente limpava e cozinhava para nós, não pela insignificante quantia que meu avô lhe pagava, mas porque gostava do velho e era o mais próximo de uma amante que ele tinha). Chamaram-me de irresponsável, que não podia deixar o velho sozinho em casa daquela maneira. Eu mostrei o bolo e disse que fui buscar algo que comer. Nisso o velho acordava e entrava na sala todo despenteado mandando as velhas embora e me desejando uma boa noite. Recolheu-se em seguida levando o bolo que eu lhe comprara para o quarto. Fiquei sem nada para fazer até às nove horas, acabei assistindo às notícias. A âncora anunciou um homicídio que acontecera no meu bairro na madrugada anterior. Achei estranho que estava na rua e não vi movimentação nenhuma. Mostrou-se o bar do assassinato: era onde eu havia estado, exatamente! A vítima não se havia identificado, era um homem, tinha seus quarenta anos e muito dinheiro na carteira. Entrou no bar um homem de rosto coberto e atirou duas vezes na cabeça dele, deixando o bar antes que o dono do lugar assimilasse o ocorrido. Preparei uma dose de vodka barata que tinha em casa. Às nove, quando bateu o Pontes na porta do apartamento, despedi-me do meu avô e logo fui dizendo ao meu amigo que tínhamos o que fazer naquela noite, antes de ir a qualquer lugar. O Pontes me perguntou a respeito de Vanessa, eu disse que não era ela que ocupava meu pensamento naquela hora, mas, se isso o fazia contente, havíamos terminado. Ele não falou mais do assunto, perguntou aonde íamos. Respondi que tinha negócios a tratar com uma dona "perto da Azenha". "Como assim?", quis saber ele, eu expliquei tudo desde o início. Ele riu, eu "não tinha mais o que fazer". Julio Pontes era bom amigo, e já havia bastante tempo, sabia que qualquer coisa fora do normal me instigava, que eram essas coisas sem nexo com a realidade habitual que me faziam desperto e excitado, que todo o resto me aborrecia muito, as coisas quotidianas, os mesmos lugares de sempre e as pessoas a quem se vê todo o dia. Fomos a pé pela avenida até o hospital, mas eu não sabia ao certo onde ela morava. Sentamos num bar e o Pontes me perguntou o que exatamente eu queria com ela, se era pelo puro prazer da especulação que ali estávamos; eu respondi negativamente. Na verdade eu não tinha nada pensado, queria saber mais dela, ao menos, do homem que morrera vítima de dois tiros na madrugada e mesmo se ela sabia do que havia acontecido depois que saímos de lá. O Pontes me chamou de louco e sorriu, como sempre, mexendo os ombros e tomando mais um gole de cerveja. Agradava-lhe qualquer lugar em que pudesse beber longe das vistas da noiva.

Lá pelas onze e meia ele se aborreceu e me convenceu a fazer qualquer outra coisa que não fosse esperar por uma mulher que eu não conhecia num bar sujo, sem saber se ela de fato passaria por lá. Pagamos a conta e enquanto meu amigo se distraía com qualquer coisa junto ao balcão, eu, parado junto à porta, a vi do outro lado da rua. Chamei por ela. Ela parou e me viu.

Atravessei correndo, semáforo fechado para pedestres, deixando o pobre Pontes para trás, e a cumprimentei com um aperto de mão. Ela gelara minha tentativa de abraçá-la. Estava com uma aparência cansada, de vestido marrom e casaca nada elegante, bem diferente da roupa que usara na madrugada anterior; disse que estava com pressa. Perguntei se ela se recordava de mim e como ela estava, que fiquei sabendo do destino do homem que a acompanhava. Ela olhou primeiro para mim, franzindo a testa incrédula, "o que o faz pensar...". Suspendeu a frase pela metade e girou o pescoço, desta vez olhando em volta, tensão mal disfarçada com um sorriso nervoso. Disse que estava tudo bem, que o homem morto era seu irmão e que tinha dívidas de jogo. Emendou que era tarde e tinha que voltar pra casa. Quis saber onde ela morava exatamente, ela irritou-se e me largou uma despedida gelada, saindo rápido e olhando para os lados, protegendo o pescoço do frio com a gola do horroroso casaco. Nisso o Pontes já havia atravessado a rua e veio me perguntar o que havia. "Mulher louca", respondi, e já estávamos indo pra casa quando um carro invadiu a calçada e atropelou a mulher que segundos antes estivera ao meu lado. O carro deu ré e passou por cima dela estirada no chão, enquanto o Pontes me segurava, tão estarrecido quanto eu, antes de acelerar e dobrar a primeira esquina bem acima do limite de velocidade. O Pontes quis guardar a placa, eu corri para a mulher ensangüentada, enquanto as pessoas em volta davam gritinhos ou clamavam que alguém deveria chamar a polícia. Uma ambulância chegou rápido, respondendo ao chamado do Pontes, o sensato, mas já era tarde. Ela estava morta e eu sequer sabia seu nome.

Depois a polícia quis saber se estávamos com ela, o que sabíamos da mulher, entre outras coisas. Uma delegada veio conversar comigo e com o Pontes, disse que a mulher se chamava Lisandra e que era manicura num salão da zona leste até algumas semanas antes, quando parou de ir trabalhar. Contrariando os conselhos do Pontes, eu contei à delegada tudo o que se passara desde a noite anterior. Ela anotou meu endereço e saímos da delegacia às três horas. Fomos ainda a uma festa perto do prédio do Pontes, mas eu não fiquei muito tempo, fui para a casa deixando-o bem acompanhado (ou não, depende do que a noiva dele acharia da moça se a visse), e fui para a casa. Não dormi antes das seis, no entanto.

Acordei novamente muito tarde e saí para almoçar com o velho, que me esperou acordar movido pela sua consideração carinhosa habitual para comigo. Era domingo. Havia um ar saudável nas ruas que não combinava com o gosto que eu tinha na boca. Limitei-me a responder com um sim ou com um não todas as perguntas do pobre do velho. Sempre penso que ele deve se sentir muito sozinho vivendo comigo, que sou um lacônico. Decidi não falar nada sobre os acontecimentos noturnos, primeiro para não ouvir repreensões, segundo porque tinha preguiça de entrar em detalhes indispensáveis para a compreensão da história. Deixei-o na praça, depois do almoço, com uns outros idosos conhecidos e fui ao Pontes, mas esse não estava em casa. Voltei para o meu apartamento e fiquei no meu quarto, lendo qualquer coisa para a faculdade sem prestar atenção. Ouvi o velho chegar e depois me desejar boa noite do corredor. Dormi pouco depois da meia-noite, entediado. Na manhã seguinte tinha muito que fazer, não tive tempo para pensar em bobagens até as seis da tarde. Em casa, me haviam deixado um recado da delegada para comparecer à delegacia assim que pudesse. Meu avô quis saber do que se tratava, o que tinha acontecido de grave; respondi que não era nada, era só sobre um atropelamento que eu tinha presenciado outro dia e que depois lhe contaria tudo melhor. Peguei o primeiro táxi e desci em frente à delegacia, há duas quadras somente do lugar do atropelamento. A delegada me recebeu simpaticamente. Contou-me que não se via nenhuma ligação entre os dois homicídios, a mulher e o homem não eram mesmo parentes, e que, sim, o caso da mulher estava sendo tratado como o assassinato que fora. Disse que não me preocupasse, que seria chamado somente como testemunha, a fim de contar o que vira, mas que isso ia demorar mesmo um pouco para acontecer. Perguntou se eu tinha certeza de que se tratava da mesma mulher. Eu não tinha nenhuma dúvida. Queria que ela me dissesse quem era o homem. Relutante, confessou que não sabiam seu nome todo, que era conhecido pelo codinome "Tucano", que vendia peças de carros usadas e que eventualmente teria ligações com prostitutas de alto nível da capital. Fui para a casa meio que decepcionado por ter recebido tratamento tão marginal no caso. Testemunha vulgar? Não era eu o único elo de ligação entre as duas mortes?

Cheguei ao apartamento, demorei um pouco para achar a chave no fundo do bolso do casaco. Ao experimentá-la na fechadura, porém, não pude abri-la. Forcei várias vezes, sempre com medo de quebrar o mecanismo ou a própria chave, até que desisti, pondo-me a esmurrar a porta sem muita esperança de que o velho, mais surdo que eu, levantasse da cama para abrir a porta para mim. Depois de certo tempo, perdi a paciência. Sentei-me no corredor, encostado à porta. Quando uma das comadres vizinha de porta botou a cabeça para fora, esqueci por um momento a simpatia cínica que dispensava às velhas do bairro e a mandei à puta que a havia parido. Minutos depois, um carro de polícia parou em frente ao prédio. O policial entrou e perguntou-me se eu era morador do edifício. Disse que sim, que meu avô era homem doente, que a fechadura estava emperrada e que não havia quem abrisse. O policial nem chegou a tentar abrir, imobilizou-me quando me levantei e me levou para a rua. Do lado de fora do prédio, quis saber o que estava acontecendo, mas o policial me respondeu com um soco que me tirou um pouco de sangue da boca, mas nenhum dente, felizmente, e mandou que eu saísse de perto daquele prédio, ou seria diretamente enviado ao presídio. Decidi voltar mais tarde, entendendo que não haveria possibilidade de diálogo com o soldado.

Pensei em ir a algum lugar comer alguma coisa, que tinha esquecido de comer no afã de responder ao chamado da delegada. Escolhi a casa do Pontes, na cara dura. Chegando lá, uma vizinha me disse que o rapaz tinha ido à casa da noiva. "Droga!", exclamei em voz alta, esqueci-me dessa mania que os noivos têm hoje em dia de morarem um na casa do outro durante a semana. Tive muita inveja deles, moravam sozinhos, e não com a família como eu e a Vanessa. Voltei pros arredores da minha casa. Adoraria a idéia de ficar na rua até tarde no inverno em qualquer dia da semana, exceto na segunda, porque a terça era o dia que começava mais cedo na minha semana, tinha compromissos a partir das oito da manhã, e também porque nenhum bar abria na segunda. Encontrei por sorte um restaurante onde um chapista compadecido dispôs-se a me preparar um sanduíche, mesmo estando prestes a cerrar as portas.

Sempre imaginei que fazer se um dia ficasse sem abrigo por uma noite. De vez em quando passava por uma árvore, ou por um monumento e pensava que me poderia esconder ali se ficasse sem teto naquela cidade. Jamais consideraria isso seriamente, concluí, mesmo naquela situação estranha. Fazia muito frio, mais do que o normal à noite, embora desconfiasse que fosse a falta de álcool que me fizesse sentir assim.

Mal terminei o sanduíche, me escorraçaram da lanchonete como eu previ que fariam. Decidi tentar entrar em casa mais uma vez. Quando me aproximei do prédio, porém, um homem ,cujo rosto não vi bem e que deveria estar à minha espera desde mais cedo, me atacou, segurando-me pelo braço e socando meu estômago. Do nada surgiu outro, por trás de mim, que me segurou para que o primeiro me pusesse sem sentidos depois de um bocado de pancadas na cabeça.

Acordei com muita dor num chão molhado. Tremia. Tentei dizer alguma coisa, ouvir minha própria voz, mas não conseguia, não podia me convencer se por debilidade ou por falta de coragem. Estava muito escuro. Havia música, alguém escutava rádio perto de onde eu estava. Não me mexi até que veio um homem, o qual eu não reconheci, que me pegou pelo braço e me levou para uma outra sala, onde havia o rádio que eu estivera escutando e mais três pessoas: um homem que eu não conhecia, a mulher que eu mesmo vira morta e o homem cuja notícia da morte eu vira pelo jornal. Esse último riu olhando para mim, como se sorisse. Eu baixei a cabeça, atormentado. A mulher foi a primeira a se aproximar e levantou o meu queixo, me encarando. De perto pude compreender que não era a morta que eu vira, mas, sim, a delegada, a quem eu encontrara horas antes. Não tinha até então, notado a semelhança entre as duas. Não disseram nada por alguns instantes. A delegada balançou a cabeça e estalou a língua. O desconhecido fez um aceno com a mão e o homem que me buscara no quarto úmido me deu um empurrão na direção de uma porta que dava para a rua. Vi que se tratava de uma casa em meio a um descampado sem nenhuma iluminação em redor e umas manchas escuras ao longe que podiam ser matagais. O homem me deu um chute nas costas e eu entendi que devia sair dali o mais rápido que pudesse. Mesmo sem nenhuma força pude correr, corri como nunca em minha vida, desesperado, sem saber sequer se corria em linha reta. Corri por um tempo que pareceu bem se tratar de horas, até ouvir uma explosão e em seguida uma outra, e sentir um calor molhado e viscoso na batata da perna e outro nas costas, caindo de borco na grama úmida, sentindo essa umidade misturar-se ao suor do meu corpo muito desagradavelmente. A terra molhada invadiu meu nariz, meus olhos e a minha boca. Demorei ainda um momento ou dois para imaginar e compreender que se tratavam de tiros. Nunca havia sido baleado antes. Pensei em Vanessa, pura, de camisola, a dormir numa cama limpa e quente com raiva de mim, e senti pena de mim mesmo. E nojo. E um pouco de remorso também por todas as sórdidas coisas que havia dito ou feito em minha vida.

A Profunda Cicatriz

Havia quanto tempo eu dissera que já não podia mais? Era exatamente assim que eu me sentia na adolescência, quando minha mãe cozinhava o jantar. Ela chegava do trabalho sempre tarde e eu me recusava a comer qualquer coisa que não fosse a comida dela, numa auto-disciplina que não mais existe (acho que se perdeu enquanto eu cursava a universidade). Eu tinha muita fome, sofria com a fome, minhas entranhas se reviravam e todo o meu corpo tremia com aquele desespero semelhante ao de quem se afoga. Então minha mãe chegava, e chegavam ao meu quarto os primeiros ruídos de cebolas fritando e também os primeiros cheiros da refeição sendo preparada, iguais aos primeiros cheiros de refeição que eu percebia do berço, quando nem tinha memória ainda para cheiros, e antes ainda disso, consideradas as memórias genéticas de um óvulo que já existia em minha mãe quando ela ainda era somente a filha da minha avó, cujo cozinhar possuía os mesmos primeiros cheiros. Era um alívio, não era um alívio, era um duro soco em meu estômago, era um agravamento do desespero da fome, como uma febre que piora muito antes de melhorar. Dados uns dois quartos de hora, a cozinha silenciava. Minha mãe me chamava pelo nome, do corredor. Ouvia o resto da família pegando os pratos, barulhos de vidro e metal, pequenas conversas. E então eu me acalmava: era o verdadeiro alívio. Eu sabia que a comida estava posta, a fome tornava-se fácil de suportar, uma companheira desimportante. Então eu não ia jantar, ficava no meu quarto, porque podia enfim me concentrar em algo maior. A fome continuava lá, mas era porque eu queria que ela estivesse lá. Eu assumia o controle e a tortura não mais tinha efeitos sobre mim. Minha mãe enlouquecia e vinha me buscar a tapas e só assim eu comia, não temia mais a fome, não temia mais ser esquecido pela minha mãe. Era exatamente o que acontecia agora, com Fernanda.

Havia muito tempo eu disse que não podia mais. Antes de concluir que o casamento chegara ao fim, tudo era suplício. Depois que falamos sobre isso e aceitamos que nada mais existia num assombroso acordo racional, porque éramos assombrosamente racionais aos vinte e cinco anos, tudo ficou fácil. Tudo era simples e viver não pesava mais sobre nossos ombros. Tanto nos entendemos melhor que eu não saí de casa, ela não saiu de casa, ficamos os dois amigavelmente juntos, dependíamos já um do outro desde que éramos crianças, mesmo tendo nos conhecido somente aos dezoito anos. Não consigo entender hoje em dia o que foi que nos levou ao casamento, embora me lembre nitidamente que à época tudo fez sentido. Éramos dois universitários, eu era de áries, ela era de leão, ela tinha um gato chamado Pétya, eu queria um cachorro pra chamar de Ródia, fomos morar juntos. Minha mãe me amaldiçoou, antes de morrer agonizando num câncer de pulmão. Não derramei uma só lágrima, o que me fez descobrir que a verdadeira tragédia é seca, a verdadeira dor não tem nada de úmida, é seca e vazia e solitária. Ao lado de Fernanda, a verdadeira dor fora solitária. Mas a solidão ao lado de Fernanda não representava mais nenhuma dor então e era isso que me intrigava, mas me intrigava bem pouco, que minha alma andava tão boa que não havia espaço para a escuridão de uma dúvida no meu rosto cansado de satisfação. Não foi estardalhaço quando Fernanda passou a não dormir mais em casa uma noite ou outra. Ela tinha seus amantes, eu tinha os meus. Completávamos, dividíamos o sono, e aquilo não era senão amor, despido de paixão, essa motriz sensual que termina, que só pode terminar em destruição e é por isso que agora eu sorria. Paixão, só fora de casa. Dentro de casa, restava apenas o aroma floral de Fernanda, ainda lânguido, ainda atraente, mas terno, de um modo que não houvera sido antes: antes era quente, muito quente, queimava. Agora era um conforto viver ao lado de Fernanda.

Só tinha um medo, um medo inconsciente, que eu demorei a perceber que existia, embora de certa forma o tivesse pressentido quando aconteceu das primeiras vezes. O medo era não ter mais Fernanda, perder Fernanda para um ideal burro de felicidade que ela pudesse ainda conservar que a fizesse me deixar por alguém que não lhe daria mais que um membro disfarçado de carinho. Decidi que eu deveria morrer ao lado de Fernanda, mas uma mão cutucou meu ombro e escarneceu de mim, “você sabe muito melhor do que ninguém que o peso das suas resoluções é o de um pêlo de rato”; a mão era a minha covardia.

Estava decidido, queria um final trágico para a minha história com Fernanda. Um final trágico e seco, como a morte da minha mãe, a respeito do qual não se derramaria uma lágrima. Eu queria que, após as conseqüências de minha tragédia, o tempo respeitasse e soubesse guardar a minha loucura. Só me faltava mesmo a coragem. Morávamos sobre o mesmo teto e eu a amava enquanto as coisas fossem assim. Se ela me deixasse, me apaixonaria. Eu somente esperava por isso, esperava pela oportunidade de me apaixonar de novo por Fernanda, para que a paixão pudesse nos destruir, para que eu pudesse nos destruir. Delirava nesses pensamentos nas noites em que ela não voltava pra cara, quando eu sabia que ela passava a noite com algum homem novo. Eu perdia aos poucos a capacidade de sair, de me relacionar com outra pessoa, pelo menos na intimidade do sexo. Nas noites em que ela dormia em casa, eu dormia tranqüilo e suspirava durante o sono.

Num dia aconteceu, de repente, como essas coisas simplesmente acontecem – e por isso muitas vezes levamos um tempo enorme até compreendê-las e também as suas conseqüências. Fernanda não voltou pra casa, mas isso era normal. Dei-me conta de que ela levara quase todos os seus pertences somente na manhã seguinte. Fiquei desolado. Não houve telefonema que me pusesse para fora do meu quarto. Inquieto na cama, eu arquitetava, delirava, partia do fogo da paixão que agora violentamente me consumia, levitava para um desprendimento de morte que me desapegava à matéria e tombava, por fim, como um cadáver, no lamaçal do medo, da vergonha, da decepção, do sangue, que ainda não era meu, nem de Fernanda, nem de ninguém, era de um animal, um animal que morava em mim e que cuspia e guinchava e estrebuchava em desespero, até que eu levantasse da cama suado e preparasse um café, para depois retornar à vigília de conspurcar a memória da maldita até altas horas da madrugada, repetindo o ciclo de miséria. Precisava de um plano. Somente. Um plano de fuga, para escapar do círculo vermelho, para deixar-me em paz com Fernanda. Mas essa luz eu não alcançava. Decidi, finalmente, às luzes de uma aurora que, essa sim, teimava em perturbar a plasticidade do céu daquela hora (perfeito para mim, em sua coloração mais escura - que é exatamente a cor que tinge o céu na proximidade da aurora), decidi com um fervor de achado científico que deixaria de lado qualquer plano, que deixaria agir o destino, que era assim que eu sabia trabalhar melhor, sem contemplação, que a contemplação para mim era só sofrimento.

Fui visitá-la em seu lugar de trabalho sem pré-compreensões, sem rotas preestabelecidas. Fernanda pediu à secretária que me mandasse aguardar, na certa com a esperança de que eu desistisse de atordoá-la com algum drama dos que me acometiam com freqüência e que ela não só conhecia muito bem como houvera aprendido a subestimar. Aquilo eu não aceitava. Fui o mais persuasivo possível, conhecia bem aquela secretária indecorosa, muitas vezes ela sorrira para mim, muitas vezes tentara lançar sobre mim o que para ela era fácil de lançar sobre todos os outros homens. Eu ria dela em pensamento, achava-a ingênua; ela não sabia, nem tinha como saber que para mim era só Fernanda, jamais tive desejo, carnal ou espiritual, por mulher nenhuma que não fosse Fernanda, não tive casos com mulheres além dela. Permiti a mim mesmo esse pequeno embuste; fingi, muito calculadamente, possuir aquelas artes de sedução que nunca me tinham sido naturais, sorri, retribuí o olhar da secretária, fiz com que ela pensasse que conduzia a situação, sutilmente. Deixei um gancho numa palavra, dei a ela esperanças sem precisar falar muito, ela me deixou fazer uma surpresa para Fernanda. Entrei na sala.

Minha paixão mais fulminante estava ao telefone. Ela ria, inconsciente do meu desespero sofrido. Como pareciam irregulares aqueles dentes agora, que feios e amarelos, escancarados na boca cruel de advogada de Fernanda. Ela continuava a rir, afetada. Os óculos eram de um fetichismo vulgar, acetato insensível às linhas do rosto. Ela ria tanto que demorou a perceber que eu entrara. Como doeu a vergonha da estranheza de Fernanda, seu riso horroroso transfigurou-se: era uma carranca indignada, "O que você pensa que faz aqui, não deixei entrar, chamo os seguranças". Olhei para a luminária, pude ver o fogo consumindo a nós dois, a tragédia final, o circo, a morte seca que eu imaginara. Fernanda por fim notara meu desespero, meu olhar tresloucado que revelava a que eu vinha, que entregava que eu era capaz de qualquer coisa. Sua irritação tornou-se terror numa mudança que foi muito sutil no olhar, ela fora paralisada. Era tão patética quanto eu era naquele instante, temendo, sentindo o que sucedia numa intuição de bicho, cadela que era. Num segundo compreendeu que de nada adiantaram todos aqueles anos de dedicação à profissão, à sua própria formação, assim como tiveram sido inúteis o passar maquiagem todos os dias em frente ao espelho. Soube sem equívoco que a vida encontrava-se na iminência do fim. Foi quando escorreu uma lágrima do olho vidrado.

Por um momento hesitei, meu ânimo doentio arrefeceu-se como um balão que estoura e de repente perde o sentido de ser. Estupidificado, não percebia o significado daquela gota, escorrendo pelo rosto empoado de Fernanda, marcando como uma cicatriz; só que, ao contrário das cicatrizes, que são marcas impuras de uma violação na perfeição pacífica da pele, aquela lágrima lavava, purificava, mostrava a verdadeira pele por baixo da máscara, humanizava. Era uma cicatriz ao contrário. Descobri naquele instante que eu não amava Fernanda, que eu não era apaixonado por Fernanda, eu era um ser humano e assim ela também o era. Saí do escritório trôpego, a secretária não entendeu nada. Não olhei para trás, guardaria para sempre a lágrima de Fernanda como a imagem final, o rompimento. Parei na calçada em frente ao prédio sem saber o que fazer com a minha vida, com aquela liberdade que esmagava minha existência: eu era livre de Fernanda. Eu era livre. Podia me jogar à frente do primeiro ônibus que passasse na avenida, mas não o faria. Eu era um covarde, suscetível às emoções humanas, como são todos os meus companheiros de raça. Voltei para casa, tratei de vender logo aquele apartamento. Mudei de cidade, de emprego, quase mudei de profissão - contudo, àquela altura da vida, resolvi que não há que se fazer radicalismos. Eu tinha os pés na terra afinal, o que era um alívio. Ainda quando passo por uma ponte, penso em me atirar dela, mas é com leveza que formo esse pensamento. Passo a rir de mim mesmo. Sou mesmo patético.