Conselho de quem já tombou do comboio

Quando houver chegada a hora de pular dos trens, ninguém tocará o sino.

Antes, permanecerão todos rijos, uns céticos, outros desejosos, alguém certamente com lágrimas nos olhos. Só a ti caberá o salto, entretanto.

Quando achares que não te cabes mais nos trens, respira: quando houver chegada a hora, acharás somente os trilhos, cruzando as veias qual máquina. E cairás no infinito da estrada de ferro, mais céu que terra. E que toda a terra são trens, isso não importa mais nada.

Chuva gentil

Caiu sobre nós uma chuva gentil, e já não sentíamos nenhum medo. Decidimos descer a pé a longa avenida até a casa da gente. Por volta do meio-dia, andávamos pela metade do caminho.

Compreendemos então que apenas éramos na metade do caminho.

E jamais chegamos em casa.

Impasse

Eu não queria sofrer, ela disse, enquanto alguém, um anjo, diriam, mas muito mais provavelmente uma manifestação de esquizofrenia da fome, sussurrava em seu ouvido: quer sim, e como quer. Lá fora, uma chuva que não havia; na bagunça do quarto, uma caixa de som, músicas tristes em mono, músicas de quarenta, cinquenta anos, talvez. A lâmpada do teto queimada, um abajur barato denunciando uma teia de aranha muito espessa. Qualquer coisa de oceano em fotos antigas, manchadas sobre a mesa entre copos, talheres, lenços, livros e outras humanidades muitas, assimetrias de uma consciência cansada das organizações de outrora. A televisão pequena emite um sinal falho, mudo, um filme preto e branco desistido de si mesmo. À plateia desassistida, restava meia dúzia de cigarros, o gosto metálico dos cigarros, que ela queria, mas não desejava. Talvez fosse melhor se deitar, não dormir, que esse muito ela sequer esperançava. Talvez fosse melhor voltar, mas voltar de onde?, para onde?, porque, no não lugar em que se encontrava, sabia que era impossível haver chegado de qualquer forma.

I 2

Há qualquer coisa de ingênuo na manhã que não me agrada. O otimismo das pessoas, deve ser, saber que há ainda umas boas dezoito horas.

Não manjo dessa coisa de alteridade.

Sento. A uns bons cinco metros, uma criança bastante infeliz arremessa uma bola para uma mãe austera. Olhos no relógio. O blazer não combina com a amarelidade do parque, mas não posso tirá-lo, mesmo sob o protesto de cada poro – os poros não compreendem o sistema político, há que haver decisões impopulares para manter a respeitabilidade do governo, a governabilidade do respeito das outras pessoas. A austeridade da mãe já me encara com certo desprezo, enquanto cofio a barba já passada da hora de aparar, o suor vertendo, o cheiro de sordidez se desprendendo da pele, e ela atrasada, e eu sentindo a dor da cárie, o gosto de sujeira. Passa um isopor sujo, a última nota da carteira transfigurada em refrigerante de cola meio quente, que desce mal. Azia. O meio-dia febril não acaba nunca, mas nada é tão ruim que não acabe: mais uma hora, hora e meia, ela chega. Combinamos. Tento em vão ligar para o número apagado na minha mão, a voz metálica me informa gentilmente que inadimplência significa ausência de comunicação (ela não chega nada!). Experimento colocar uns noves e uns zeros na frente do número e salvar na agenda, ligo, mas o sinal é que o aparelho está desligado. Medito sobre chances. Inerte, vejo a mãe passar a mão sobre a testa da criança, obscenamente gorda. Observo, não sem certa repugnância, a mãe enxugar com a palma o suor do filho, soprar-lhe o cenho, e agarrá-lo pelo pulso. Suor, e mais suor. A mão quase desliza quando a criança obesa não se mexe, mas em seguida é como se as engrenagens esquentassem, ou como se a fome o rendesse, e o menino acaba se deixando arrastar pela a austeridade materna. Credo, penso. Silêncio de um ou dois cachorros no que parecem horas, mas as horas têm a inconveniente mania de não passarem de um minuto e meio. Ela surge do outro lado do parque.

Levanto.

Uns ois, uns despachos simples. Kafka das relações interpessoais. Seguimos andando. Uma palavra sobre a noite anterior, uns silêncios constrangidos, passou a noite onde?, resmungos, certo grau de desprezo, de conivência, de desprezo ainda uma vez. Percebo que ela conta os passos. Eu mesmo não me sinto à vontade.

Chegamos enfim a um banco e, num acordo tácito, sentamo-nos, olhando para a frente. Uns carros passavam, na lentidão do feriado. Senti uma grande gota de suor descer a linha do pescoço, sorvida em seguida pela gola da camiseta. Meu estômago revira-se de nojo, ela percebe, e eu percebo que de alguma forma ela pensa que o nojo que eu sinto é dela. Não tenho sequer a boa iniciativa de lhe dizer que não se preocupe. Era minha melhor amiga, e eu gostava dela, mas seu mal-estar me comprazia de um modo um tanto sádico, um tanto egoísta, pior, autoindulgente: não tenho do que sentir vergonha, estamos no mesmo barco, condenados os dois à humilhação de reconhecer a própria torpeza, e ainda esmagados pela insignificância de ambos. Para os que se reconhecem condenados, há que haver um exagero, para que o sofrimento da culpa valha a expiação.