O cavalo dançarino
Uma noite com Ginger Rocha
Uma taça de leite quente
Havia qualquer coisa na manhã que era diferente. Raissan de alguma forma notou, mas não acreditava que lhe dissesse respeito, era provavelmente o ar mais poluído, a rua mais suja, o arroio mais fétido, qualquer coisa assim que não fazia diferença para ele. Tirou os sapatos, como de costume, dobrou cuidadosamente o moletom e escondeu tudo debaixo de uma das pontes que cruzava a avenida, receoso dos outros meninos da rua. Àquela hora da manhã, o fluxo de automóveis era bastante intenso já, Raissan tomou seu lugar ao lado do semáforo. Mal avermelhou o disco, partiu para a primeira rodada do dia. Teve sorte logo no primeiro carro, uma moça, uns vinte anos, lhe alcançou umas moedas e uma metade de sanduíche, que acabou dividindo com três ou quatro meninos que conhecia de vista, porque sabia que os egoístas não duravam muito tempo no negócio. Seus pequenos pés, endurecidos da labuta diária, iam e vinham ágeis entre as máquinas, uns carros fechando suas janelas depressa ao avistar-lhe e aos outros meninos, outros recusando ajuda. Outros ainda contribuindo com um trocado, mas todos eles de olhares temerosos, pavor, pavor pregado nos rostos. Raissan não compreendia, com toda sabedoria de rua que tinha aos quatro anos, porque era que os olhares dos homens dos carros eram tão pavorosos. Raissan tinha muito medo do escuro e à noite, quando a madrasta e os irmãos dormiam ao seu lado, e sempre dormiam antes dele, pregava os olhos e ficava imóvel, mudo de terror, exatamente como aquelas pessoas ficavam quando ele se dirigia a elas, então, de certo modo, sabia o que sentiam. Não sabia bem era o que é que temiam, algum monstro, ou bicho, ou inseto, não sabia, não podia entender como era que aqueles homens e mulheres tão adultos, tão limpos e confortáveis dentro de seus carros, podiam temer tanto alguma coisa na ordem estofada que eram suas vidas. Estofamento e medo eram duas idéias que, para Raissan, não faziam sentido unidas.
Nos intervalos entre uma fechada de sinal e outra, Raissan gostava de observar os personagens que se aglomeravam no cruzamento. Havia as crianças como ele, pedindo, os adultos que também pediam, as crianças e adultos que vendiam alguma coisa, os artistas e os vendedores de jornais, que procuravam não entrar em contato com o resto, um ou outro pedestre, que passava bem depressa, e os motoristas, cujos perfis compenetrados passavam mais depressa ainda. A velocidade deles não se comparava, é claro, proporcionalmente, à velocidade das curtas pernas de Raissan, grossas de ficar em pé o dia todo, que conheciam pelo tato o caminho entre os carros e lampejavam aqui e ali, onde houvesse uma janela aberta. Uma vez ou outra, esperando o momento de pedir, Raissan desejava que o dia passasse tão depressa quanto os intervalos dos semáforos. Detestava passar o dia todo ali, digo, para ele não faria diferença passar algum tempo na sinaleira, uma hora ou duas, ou até atingir determinado valor, porque no fundo, não era um menino preguiçoso, mas não tinha essa opção. Era ficar no sinal do amanhecer até quase a madrugada, ai dele se aparecesse antes. E se tentava escapar, a madrasta sabia, sempre sabia quando ele não permanecia o dia todo em seu posto, não sabia como, mas aquela danada daquela mulher podia adivinhar-lhe as mentiras, e, quando isso acontecia, era surra na certa. Já pensara em fugir para sempre também, nunca mais voltar para casa, mas não tinha para onde ir. Sofreria mais num abrigo sem o pai, sem os irmãos, sem ninguém, e mais ainda na rua, as coisas que as crianças que ficavam pela rua tinham de fazer eram terríveis demais mesmo para Raissan, que estava acostumado com a aridez do asfalto, com a dureza do cruzamento. O menino ficava exausto só de pensar na caminhada que lhe aguardava no fim do dia, da avenida até a casa da madrasta, mas não voltar para lá, ficar pelas marquises da avenida, como muitos dos que ele conheciam ficavam, era potencialmente pior.
Lá pela metade da manhã, Raissan já havia juntado uma quantidade razoável de moedas, poderia até barganhar alguma coisa para almoçar ao meio-dia. Estava satisfeito consigo mesmo. Foi quando avistou o Renan.
O Renan era o líder de um grupo de caras mais velhos, de treze, quatorze anos, que se chapavam e achavam que por isso podiam mandar nos menores. Metiam medo em todo mundo, andavam sempre em bandos, como uma matilha, pedaços de metal afiados nos bolsos, cola nas mangas, chinelos de dedo e tênis roubados de outros moradores de rua. Habitavam uma praça no centro durante a madrugada, dizia-se que alguns deles até se prostituíam, mas ai de quem falasse isso perto de um deles, ou que eles ouvissem falar de alguém que tivesse dito isso: era lâmina para o infeliz. Uma vez, Raissan presenciara quando um menino um pouco mais velho que ele, que devia alguma coisa ao Renan, não se sabe bem, e que quando avistou o bando vindo, mais ou menos na mesma hora em que vinham hoje, tentou fugir deles para o meio da rua e morreu atropelado. Naquele dia, Raissan voltou mais cedo para casa, assim que escureceu. Contou para a madrasta o que acontecera, explicou que o maior medo que tinha era de morrer atropelado e que se sentira tonto o dia todo depois de presenciar a morte do outro garoto. A madrasta não lhe bateu daquela vez, apenas gritou com ele, “e medo de morrer de fome, você não tem”, e Raissan não pôde dormir por uns dois dias depois disso; cada vez que pegava no sono, era como se o menino morto viesse falar com ele, dizer para tomar cuidado com as ruas tocando os dedos transparentes e frios no seu ombro, o mesmo cheiro do arroio invadindo as narinas de Raissan. Dizia também para não se meter com Raissan, não usar cola, nem usar pedra, que foi por causa disso que ele morrera. Raissan tinha muito medo de cole e de pedra, tanto quanto tinha de escuro e de atropelamento. O pai, mesmo ébrio, lhe dizia sempre para não se meter com essas coisas, mas nem precisava, Raissan se mantinha longe delas por vontade própria. Naquela manhã, ao ver se aproximar o bando de Renan, usou sua técnica de ficar invisível, aprendida um desenho numa manhã de domingo, o único dia em que a madrasta o permitia não ir para o sinal pela manhã. Não sabe se é porque estava nervoso, ou porque estava nublado – desde o início sabia que aquela era uma manhã diferente –, mas o fato é que não funcionou o truque, Renan não somente o avistou como decidiu mexer com ele. O bando parou rindo do seu lado, um dos caras já cutucando o seu rosto, outro pedindo dinheiro, “ajuda aí meu, todo mundo tá dizendo que tu tá bem hoje”. Como ele fizesse menção de não entregar o dinheiro, o próprio Renan o segurou rudemente pelo ombro e mandou ele passar algumas das moedas que conseguira, porque “quem era egoísta não sobrevivia no negócio”. Raissan alcançou ao garoto um punhado de moedas de má vontade. “Mais, meu”, exigiu o bando, Raissan foi dando mais, já dera mais da metade do que reunira naquela manhã, “mais!”; deixaram-no sem uma moeda sequer. Renan ainda cuspiu nele antes de ir embora, “bicha, tem um jeito de mulherzinha”, desapareceu o bando numa nuvem de loló, rindo feito doidos, feito humanos ante um filme de terror daqueles violentíssimos.
Raissan sentiu vontade de chorar, mas num segundo só sentia raiva, falou todos os nomes feios que conhecia, os débeis lábios explodindo ferozes em vulgaridades pornográficas e escatológicas, muitas das quais nem sabia o significado – muitos adultos de quarenta anos que passavam indiferentes em seus carros não sabiam os significados da maioria delas.
Voltando para casa à noite, cabisbaixo, com metade do dinheiro do dia nos bolsos, pensou num milhão de vinganças que podia pôr em prática contra Renan, formaria seu próprio bando, pagaria por uma arma, machucaria tanto o Renan antes de roubar tudo o que ele tinha e depois o deixaria nu para ser atropelado no meio da avenida. Chegou em casa um pouco mais tarde que de costume, a madrasta foi logo lhe gritando da oura peça que o irmão estava doente e que precisava de ajuda, e também que a janta que fez acabara porque seu pai chegara em casa com muita fome e que ele podia ver alguma coisa na geladeira para comer.
Ouviu, Raíza? – a menina levou um susto ao recobrar a condição feminina. Eventualmente se esquecia de que em casa ainda havia alguma segurança. Lavou os pés escurecidos enxugando-os no pano de chão. Na geladeira, apenas leite gelado, que Raíza serviu numa caneca de plástico. Esqueceu a avenida no que durou aquele leite, deixou de lado o Raissan, o Renan e seu bando, o disco luminoso trocando de cor sobre os motoristas e seu medo. Quase esqueceu os próprios medos, mas eles voltaram quando, no quarto escuro, a madrasta a mandou ficar de guarda e foi se deitar com seu pai do outro lado da cortina. Adormeceu tirando a febre do bebê, o gosto de leite ainda na boca.
Sapos
– Sinto que está para chover.
Como nenhum dos dois respondia, ela continuou – Tão enormes vocês dois, tão velhos e ainda de birra.
O homem à esquerda, regata e chinelos de dedo, olhou para ela como se subitamente percebesse sua existência. O homem à direita, barba cerrada e óculos de grau, continuou encarando o nada, limitando-se a fazer uma careta – era o mais orgulhoso dos homens.
– A mãe de vocês diria o que dessa situação?
– Provavelmente ficaria do lado desse aí – resmungou o barbudo sem mover o pescoço.
O homem que não tinha barba bufou, “sempre o mesmo”. A mulher entre os dois estalou a língua, ajeitou-se sobre os próprios joelhos – Adianta manter essa implicância um com o outro, adianta?
O de barba pediu licença e já ia se levantando, a mulher o reteve – Pode ficar aqui, resolveremos isso agora mesmo.
– Como que se resolve vinte anos agora mesmo? – indagou o sem barba, sem se dirigir propriamente à mulher.
– Indo dormir é que não se resolve. Eu não tenho a paciência que a mãe de vocês tinha, família é coisa séria e eu disse que não ia dormir enquanto não resolvesse isso.
– Bom, então você fica aí conversando com seu maridinho e resolvendo isso que eu vou para a cama, quero voltar pra cidade ainda amanhã de manhã.
– Deixa, deixa, que não dá pra falar com ele. Não escuta.
– Você que escuta, não é mesmo?, mas só para poder dizer que é você que está sempre certo.
– Ok, já estabelecemos um diálogo ao menos. – a mulher espalmou as mãos sobre as coxas. Um relâmpago ricocheteou no horizonte ao mesmo tempo, o ar tornou-se mais pesado.
– Não me entendo com esse daí nem que chovam sapos – disse o irmão que estava de pé, e acrescentou – aliás, pergunta para ele por que é que eu detesto sapos.
– Você me diz, por que é que você detesta sapos?
– Um dia a gente tava brincando aqui mesmo nessa casa – respondeu o da regata num meio sorriso – eu e meus amigos...
– Sim, porque só ele é que trazia amigos para a casa de praia. A mãe implicava com qualquer pessoa que tivesse a audácia de apreciar minha companhia. Mas ele não, ele podia ter quantos amigos quisesse, eram todos muito bons...
– De fato, seus amigos eram um pouco estranhos. Todos eles, se é que você me entende.
– Você não tinha me conhecido se eu não tivesse sido amiga dele primeiro – atalhou a mulher.
– Você foi a única com quem a minha mãe não implicou, decerto porque sabia que ele também gostava de você, gostava de você de um jeito que eu nunca pude gostar.
Os três retomaram o silêncio num certo constrangimento. O irmão de barba se arrependeu um pouco do comentário, o de regata abriu a boca para falar um par de vezes, mas não encontrou palavras, pelo menos não boas palavras, palavras que não o comprometessem.
– Enfim – a mulher foi quem quebrou o silêncio novamente – você estava aqui com seus amigos...
– Sim, e eles acharam uma boa idéia – tentou continuar o irmão de regata, mas o barbudo o interrompeu mais uma vez.
– Seus amigos não prestavam. Um era filho do agiota, a outra era filha do estelionatário, os dois iguais aos pais e iguais entre si, não foi à toa que se casaram.
– Eu não sou obrigado a ouvir isso. – Foi a vez do segundo irmão se levantar – A sua gente é que é decente, é? E você quem é para julgar, hein? Me responde, grande coisa que você é, meia dúzia de faculdades pela metade, remédios tarja preta. Quem é você, hein? Eu não fui criado com você.
O de barba enfezou-se, cruzou os braços e apertou os lábios, como um menino grande. O de regata, muito mais corpulento que o irmão, embora ligeiramente mais baixo, o enfrentava de peito estufado, braços para trás, provocando o irmão, patético galo de briga.
A mulher levantou-se também, temendo já pelas vias de fato, mas os irmãos não chegariam a tanto; depois de uma certa idade, nunca mais tinham se agredido fisicamente – o que não fora necessariamente saudável.
– Estamos aqui para resolver problemas, não para criar mais um! Eu não agüento mais esse clima pesado em cada data festiva, em cada aniversário! Eu conheço bem vocês dois, vão resolver isso aqui nem que seja a última coisa que eu faça. Ou eu vou sair, hein, pego o carro e vou embora daqui e nenhum de vocês vai me ver ou falar comigo de novo, nunca mais, ouviram bem?
O irmão de barba riu.
– Que foi, acha que é uma piada?
– Não. Mas você pareceu muito a minha mãe falando agora.
– Esqueci que ela fazia isso – acrescentou o outro – ficava dizendo que ia embora quando a gente brigava. Mas nunca ia, nunca foi.
– Você sempre começava a chorar e ela ficava do seu lado...
Mais um relâmpago refletiu nas janelas da casa de praia. A coruja entocou-se junto aos seus ovos no terreno baldio da frente. O vento acelerou.
– Ela sempre dizia que você era mais parecido com ela – disse o da regata.
– Mas era de você que ela gostava mais.
– Eu acho que não – atalhou a mulher – Só porque ela o protegia mais, não significa que gostava mais dele. Eu concordo com ele, você é muito mais parecido com a mãe de vocês, mais independente. Você é áries, né? A mãe de vocês também era de áries. Eu também sou, é por isso que a gente se dá bem. Seu irmão é de peixes, isso é uma coisa que nós temos em comum: nenhum de nós resiste a um charme de peixes. – Ela passou de leve a mão no rosto do marido, o irmão de regata.
– Mas você bem que gostava era dele... – disse o da regata num tom meio amargo. A esposa, de leve ofendida, afetou horror e resetou a mão.
– Como assim? Como que você me diz uma coisa dessas?
– Todo mundo sabe. – Ele riu, melancólico – até tentaram me alertar, veja só. No dia do casamento, um primo veio me dizer que achava, veio me perguntar se eu não duvidava de que era dele que você realmente gostava, se não tava casando comigo como prêmio de consolação...
A mão que acariciava tão logo se transfigurou em tapa que mesmo o irmão de barba sentiu como se tivesse sido atacado no próprio rosto.
– Às vezes... – a mulher não terminou a frase. Desta vez foi o rouco barulho de um trovão que estourou ao longe, fazendo os sapos coaxarem mais alto.
– Não é impossível, sabe... – disse o irmão esbofeteado esfregando o rosto, para surpresa do outro irmão, aproveitado o ensejo para fugir do conflito que ele mesmo causara – Não é impossível chover sapos. Acontece com freqüência, onde tem furacões e tal.
– Como naquele filme... – disse a mulher desviando os olhos vermelhos dos dois irmãos. O de barba olhava para o casal estupefato, o irmão e a cunhada, o diálogo tornando-se surreal.
– Sim. Os ventos levantam os bichos e chovem partes deles congeladas.
– Que nojo... – disse a mulher franzindo o rosto e encolhendo-se num arrepio, não se sabe se de frio, pelo tempo que virava, ou se de repugnância.
– E que fim leva a história dos sapos afinal? – quis saber ela, esfregando os braços.
– Digamos que... Choveu sapos naquele dia.
– Na minha cama. – o de barba sorria desgostoso; retornava ao diálogo através da má lembrança.
– Era uma brincadeira apenas. Boba, eu sei, mas era brincadeira. Não foi para todo aquele escândalo, voltando para casa no mesmo dia, se recusando a entrar no mesmo carro que eu.
– Cara, odiei você mais naquele dia do que nunca serei capaz de odiar alguém, você me conhecia muito bem, sabia o horror que eu tinha, sempre tive, de anfíbios de qualquer espécie. Mas não foi só isso, você leu coisas que não tinha que ler naquele dia, disso você não se lembra? E espalhou para a corja dos seus amigos. Riram de mim como um bando de bestas, mas grande coisa, hoje eu vejo que aquilo não foi grande coisa. Mas à época foi horrível.
– Eu não sabia disso – disse a mulher.
– E isso que você se considera minha melhor amiga.
O irmão de regata fechou a cara, detestava aquela história de melhor amiga, mais de uma vez brigaram, ele e a mulher, por causa dessa estúpida cumplicidade que ela tinha com o irmão desde a adolescência. Como se adivinhasse o pensamento do irmão, o de barba falou:
– Você sabe, não sabe, que entre eu e ela...? Quero dizer, você entende, não entende?
– Eu tento entender. Aliás, eu sei que é impossível, eu sei que nunca... Bom, aceitar uma coisa e outra foram os dois maiores problemas da minha vida, você sabe bem disso. Engraçado você estar no centro dos dois.
– Não posso fazer muito a respeito. Dizer que sinto muito?
– Não me convence.
– Porque eu não sinto. Não sinto por ser eu mesmo, não sinto por ser amigo da sua esposa. O único problema que eu tenho faleceu.
Do outro lado da rua, a coruja piou de dentro do ninho.
– Se faleceu, – disse a mulher – se faleceu, então está morto. Enterrado. Não há mais que se preocupar.
– Aí é que você se engana – respondeu o da barba, os olhos brilhantes – os problemas tem vida útil para serem resolvidos, depois de falecidos e enterrados, então não é mais possível matá-los, é se acostumar com eles até a nossa própria morte.
– Sempre dramático! – o de regata virou os olhos.
– Eu não sei que ainda estou fazendo que não fui dormir, boa noite pro casal.
– Espera... – quis dizer a mulher, mas, nesse mesmo instante, um objeto maciço caiu com força no telhado da varanda, barulho forte de pancada, e escorregou para o chão num reflexo verde. Os três calaram-se e baixaram a cabeça para procurar na grama do que se tratava o objeto cadente. Nisso a chuva começou a cair.
Domingo
– Que é que há para se ver na chuva, menino?
– Que chove.
A mãe esfregava roupa num tanque, o menino, costas apoiadas na máquina de lavar, segurava um livro, mas prestava mais atenção no barulho de chuva, a luz da cozinha-área-de-serviço acesa, embora fossem quatro horas da tarde.
– Levanta daí menino, vai pegar uma gripe.
– Vou nada, tá bom aqui, mãe.
– Tá úmido aí, menino! Não tem nada que fazer lá dentro? Onde já se viu, lugar de criança não é aqui perto do tanque não.
– Mas é que eu gosto tanto de ler com o barulho da máquina de lavar...
A mãe sorriu, “esse menino não bate bem”.
– Mãe, a senhora acha que pode cair raio aqui em casa?
– Raio, menino, que coisa para se pensar. Não cai raio nenhum, que Santa Bárbara não deixa.
– Mas, mãe, caiu raio na casa da Tatiana, Santa Bárbara tava aonde?
– Deixa de ser besta menino, deixa. Sabe a igreja no fim da rua? Tem pára-raio lá, não tem como cair raio na rua inteira.
– Ah... Mas a senhora tem certeza, mãe?
– Claro menino. Anda, aproveita que tá aqui e me ajuda a tirar essa roupa do balde.
– Mãe... O que a senhora está fazendo lavando roupa se está chovendo?
– Você hoje está impossível, menino – os dois seguravam o enorme balde um de cada lado, despejando a água turva no tanque – Tenho tempo de lavar durante a semana, tenho? Se eu não lavo roupa hoje, não lavo mais até o domingo que vem. Mais tarde a gente pega a roupa limpa toda e leva na casa da Dona Mariana, que tem máquina de secar.
– Ah, mãe, eu não quero ir na casa da Dona Mariana.
– Por que, menino? Uma senhora tão boazinha, trata você tão bem.
– Mas o marido dela tá sempre de porre.
– Menino! – Ela largou a roupa que esfregava e aproveitou para afastar uma mecha de cabelo do rosto. – Não fala assim do Seu Timóteo, menino, que coisa mais feia. Ele é padrinho da sua irmã.
O menino fez uma careta.
– Eu não gosto dele, mãe. A Adriana falou que ele sempre mexe com as amigas dela, detesto aquele velho.
– Não se fala assim das pessoas... Mas quando que a Adriana disse isso?
– Sempre diz, sempre que a Emília vem brincar aqui e ela me obriga a brincar com elas. Detesto a Emília também.
– Tadinha da sua irmã.
O menino terminou de despejar o balde no ralo.
– Mãe, é verdade o que a Emília falou, que ela é rica e a gente é pobre?
– Ela falou isso? Que menina boba.
– Falou sim, falou que a gente só pediu pro Seu Timóteo ser padrinho da Adriana porque eles são ricos, que a gente sempre precisa de alguém rico pra pedir favor.
A Mãe franziu a testa. – Que menina bobalhona essa sua amiga Emília.
A máquina de lavar emitiu um forte estalo e parou de trabalhar subitamente. Funcionava meio mal agora. Por um instante, foi audível apenas o barulho da chuva batendo no telhado de zinco da cozinha. Logo a máquina normalizou-se. O menino sentou-se novamente no chão, retomando o livro.
– A Emília disse que a Adriana vai ser rica também um dia. E que eu vou ser sempre pobre. Por isso que ela gosta da Adriana e não gosta de mim.
– Bobagem, menino, bobagem. Eu tenho tanto que fazer e você vem aqui falar de bobagem? Não tem lição pra fazer, não?
– Tô fazendo, mãe, tenho que ler esse livro pra escola.
– Então lê quietinho e deixa a mãe terminar a roupa. Adriana! – A mulher gritou para dentro – A sua irmã tá vendo televisão?
– Não sei, não sou babá dela. Acho que ela saiu pra brincar.
– Nesse tempo? Depois não me vem reclamar de dor de garganta. Você também não, sentado aí no frio. Que é que eu fiz para merecer isto?
O menino emburrou. Continuou a leitura do livro, mas não era capaz de se concentrar. Aquela leitura era muito chata.
– Mãe?
– Que foi, menino?
Ele não respondeu. A mãe continuava esfregando, esfregando.
– Mãe...
Foi a vez da mulher ficar em silêncio.
– Mãe!
– Que foi menino? – Ela parou de esfregar para olhar para o filho.
– Agora esqueci o que ia dizer.
– Era mentira então.
– Não era...
Seguiram quietos por mais algum tempo. A mãe percebeu a inquietação do filho, que baixava a cabeça para o livro sem prestar atenção e olhava em seguida para a basculante encardida, por onde entrava quase nenhuma luz naquele dia de chuva.
– Mãe, por que é que a senhora não fala nada?
– Como assim, menino? Porque eu não tenho nada para falar! Sábio é quem tem alguma coisa que falar, bobalhão é quem tem que falar alguma coisa.
– Eu gosto de passar o dia aqui com a senhora, mãe.
O telefone tocou lá na sala. O menino largou o livro e saiu para atendê-lo num pulo.
A mãe largou a roupa no tanque e enxugou as mãos na blusa. Juntou do chão o livro que o filho estivera lendo e leu o título enquanto passava a mão sobre a testa, o suor de dissipando na mão gelada de água do tanque. Lembrava de ter lido aquele romance havia muito tempo, quando ela mesma estava na escola. Mas será que lera mesmo? Não lembrava de nada da história, como se tivesse passado por ela muito rápido, sem assimilar coisa alguma. De repente, olhou para o relógio na parede e assustou-se, o final de semana passara muito rápido. Largou o livro num canto e foi ver com quem o filho falava ao telefone, de repente era uma de suas patroas para dar algum aviso e não confiava em criança para dar recados.
A máquina de lavar continuou zunindo, o barulho da chuva de fundo: orquestra dominical.
O Duplo Espreitado
– Este sou eu reclamando. Espera. – Levou a mão ao ombro da moça para mantê-la agachada, ainda que ela não houvesse feito nenhum sinal de se erguer, como se adivinhasse.
“Cara, um mês inteiro sem postar, que é que esse rapaz anda fazendo?”
O homem que espreitavam deixou o escritório. Desta vez, a menina, escondida atrás de um móvel de madeira ao lado do amigo, chegou a esticar as pernas, mas ele, que era idêntico ao homem que acabara de deixar a sala, segurou-a pelo ombro, puxando-a para baixo, bem a tempo – o espreitado retornava. Suspenderam a respiração por um instante. O espreitado deixou novamente o escritório.
– Agora sim – disse o rapaz à amiga. Levantaram-se os dois. Foram direto ao computador. A menina plugou um pen drive da parte dianteira do PC, o rapaz procurava por alguma coisa na tela avidamente, passava os olhos muito rápido pelos arquivos, com medo de não prestar atenção no que era importante. Pouco tempo, pouco tempo.
– Eu já estou voltando, – disse ele exasperado à garota que o acompanhava – se der para não fazer, seria ótimo... – engoliu a saliva desgostoso, levando a mão à testa – Tudo certo com o pen drive?
– Sim, pode gravar.
Levou pouco mais de alguns segundos. Quando já se encaminhavam para a janela por onde entraram, porém, o homem que espreitavam voltou.
– Mas que...
Encararam-se os dois, o mesmo olhar estupefato, a reprodução perfeita um do outro. Pela primeira vez eram capazes de ver, por si mesmos, o que só podiam se contentar em ter como uma idéia, através de imagens, às vezes mais fiéis, às vezes menos, dependendo do ângulo da lente, da luz atrás do espelho, do ânimo do retratista. Congelaram diante do espetáculo mútuo.
A menina, alheia à estupidificação dos correspondentes, pensou rápido: sabia já o que tinha feito, porque o companheiro lhe contara. Agarrou a luminária sobre a mesa e desferiu um golpe violento na testa do espreitado, que tombou inerte.
– Droga! – exclamou o amigo dela, o que ficara de pé, levando a mão ao machucado na testa, ainda não cicatrizado. Com tudo o que acontecera, havia esquecido que ainda doía.
– Achei que dava para pular essa parte...
– Não deu...
– Então... Será que..?
– Agora só indo até o fim para saber.
Ela adiantou-se para a janela. Olhou para trás ao pressentir que o companheiro não a seguia.
– Anda logo!
– Só um momento!
Agachou-se ao lado do homem caído no chão, de espreitado a abatido, e logo espreitador novamente, como ele bem sabia. Suspirou. Então era essa a expressão que tinha enquanto dormia. Seria incapaz de imaginar-se assim tão sereno. Delicadamente, passou os dedos sobre a testa do homem desmaiado – gostava tanto que lhe acariciassem a testa, mas nunca lhe adivinhavam esse gosto. O seu eu idêntico inconsciente reagiu ao toque, ele quase caiu para trás.
– Anda logo! – ela repetiu raivosa entre os dentes.
Felicidade
Sou mulher. Mãe esposa profissional. Como mulher – mãe, esposa e profissional – uso Felicidade. Compro Felicidade todos os dias, no supermercado, na farmácia e até na banca de revista. Toda dona-de-casa usa Felicidade. Que você está fazendo que ainda não comprou a sua?
Sou mãe, sim, privilégio insustentável, mas não tenho meus filhos ao meu lado. Meu cachê mal dá para mim, vou lá manter meus filhos. Dra. Suzana também é de opinião de que é melhor que eu os deixe com o pai por enquanto, lá eles têm Felicidade todos os dias, nas horas certas. Eu devia ter sido advogada. Minha mãe insistiu tanto que eu fosse advogada, queria tanto, fazia planos. Só buscava o melhor para ela e para a família, mulher que era. Ela também tinha Felicidade sempre ao seu lado. Até quando se deu um tiro bem no meio do peito por causa do câncer, a Felicidade estava sobre a mesa de cabeceira, recém aberta, comprada naquela manhã mesmo. Não chegou a ser consumida até o final. Nunca uso Felicidade até o fim, quando está acabando uma, sempre abro outra.
Meu pai foi quem ficou abatido nesse dia, muito mais do que se poderia prever. Meu pai era estranho, não usava Felicidade: achava supérfluo. Passou anos abatido depois da morte da minha mãe, descontando só em mim, filha única, todas as desgentilezas que distribuía antes igualmente entre as duas, pobre coitado, pelo que podia esperar agora? Que eu vá busca-lo, decerto, lá no asilo em que o deixei, ele sem saber quem eu era direito, mas com memória boa para humilhações, continua bom em humilhar, mesmo perto do fim. Da última vez em que o visitei, perguntou o que era mesmo que eu fazia da vida. Abri um largo sorriso, fotográfico mesmo. Peguei sua mão. Falei sobre minha bem sucedida carreira de atriz, a grande casa à beira-mar, as crianças, os cachorros, que lindos eram meus cachorros!, e tão inteligentes. Meus filhos também eram inteligentes: precisava ver o mais velho, o mais velho se chama Humberto, como o avô! Falei também, não pude deixar de falar, do meu dedicado marido, que me adora mais do que tudo. “O senhor sabe”, eu dizia, “sabe que outro dia meu marido falou brincando – ele sempre fala as verdades brincando – falou brincando que era capaz de fazer o que eu bem mandasse ele fazer, veja só! Que não havia lei natural nem legislada que imperasse acima da minha vontade, acima da magnanimidade absoluta dos meus caprichos; Deus, esse Deus em que acreditamos tanto, fala por mim, chega mesmo a morar na minha voz, o senhor veja só que heresia, pai!”.
“Eu mandei ele parar de dizer asneiras“, eu continuava contente, “parar com as bobagens, que aquilo virava praga, e se um dia eu mandasse ele se matar, se atirar da sacada do quarto andar da nossa linda casa branca que crescia da areia da praia com floreios cor-de-rosa nas janelas e nas portas, e se eu mando você se matar? Sabe o que ele respondeu, pai, sabe? Eu me mato. Me mato, mato meus filhos, mato quem for, é só você me mandar – ‘assassine!’ – que eu mato”. Meu pai senil suspirou um “puta mentirosa como a mãe” que eu sequer ouvi. Tão baixinho ele me xingou, tão sem forças, mas eu nem precisava que ele emitisse nenhum som, eu já tenho a prática sabe, eu sei quando ele me humilha pelo olhar, pelo ar abrasador que desprende da pele dele, como se a palma da mão grossa viesse firme de encontro a meu orgulho. O orgulho a gente guarda no rosto.
Deixei-o neste dia para sempre, mas não se pode dizer que não o amo, o amo tanto que nunca deixei atrasar uma mensalidade do asilo. Uma coisa não posso reclamar do meu pai, ele nunca me deixou faltar nada, sempre pagou tudo muito em dia. Deixava de beber com os amigos, de jogar no bicho, ou no bocha, e no que mais que ele poderia gostar de fazer, deixava tudo isso de lado para botar comida em casa, comida, água, luz. Só não admitia gastar com Felicidade, Felicidade minha mãe é que comprava escondida e dividíamos a Felicidade entre nós depois que ele saía, descartando a embalagem no latão de lixo da rua para ele nem desconfiar. Não deixo faltar nada a ele também na velhice, pago suas despesas em dia, em detrimento das minhas despesas até, em detrimento da pensão que eu deveria pagar aos meus filhos, mas que o meu ex-marido recusa, graças a Deus, por orgulho. Mas compro Felicidade para eles quando a gente sai, final de semana sim, final de semana não, disso eu não abro mão. Não deixo que eles me visitem na minha casa, entretanto. Busco sempre o melhor para minha família, por isso eles vivem com o pai. O mais velho, o Humberto, tinha seus onze anos à época do divórcio, meu adorado primogênito, nunca pude esconder nada dele. Tão parecido comigo! Não queria morar com o pai, “mãezinha, me deixa ficar aqui com a senhora e com o tio”, “não, meu filho, é melhor você morar com o papai, não chora que você vai ficar sem Felicidade se chorar”. O “tio” não queria que ele ficasse, eu até cheguei a pedir, ele se exaltou muito. Quando o “tio” me abandonou, quis buscar meu primogênito, “ainda quer ficar com a mãezinha?”, mas não tive coragem. Ele já estava grande, grande, já ganhava seu dinheiro e comprava sua própria Felicidade se quisesse.
Dinheiro. Emprego. Quando o “tio” foi embora, a mãe teve que ver emprego, meu filho, a mãe não era mais esposa, agora tinha que ser mais profissional do que nunca. Retomei a carreira de atriz, porque outra coisa não podia fazer.
Engraçado que no dia em que deixei meu pai para sempre, voltei para meu quarto-e-sala no centro e o telefone encardido tocou, era da produtora. Gravo o comercial amanhã, quem diria, logo eu, nessa altura da vida, mulher-propaganda da Felicidade. Precisavam de uma atriz madura, uma mulher – mãe, esposa, profissional.
Fiquei lembrando de um dia das mães na escola, eu ainda casada, as crianças todas enfileiradas recitando um poema. Depois iam falando: “minha mãe é dos correios, minha mãe dirige táxi, minha mãe é policial”. Chegou a vez do Humberto, ele todo orgulhoso se empertigou e disse “mamãe é atriz, vai ser famosa!”. Tão famosa, a mãe dele, larguei o grupo de teatro quando casei, tentei ser funcionária do banco, mas não podia, não podia. Decidi ser atriz em casa, atuava quando preparava o café, exercitava minha expressão corporal na faxina, fazia de servir um jantar um grande ato que arrancava lágrimas dos convidados. Era a estrela da farsa da vida doméstica, colhendo os louros da fama de boa esposa e boa mãe – excelente profissional – mas esperando sempre pelo dia em que a peça sairia de cartaz, porque sabia que não durava para sempre. Ser feliz não é saber que tudo acaba bem, mas saber que tudo, por pior que seja, acaba. Felicidade sempre subindo de preço, cada vez mais cara – onde é que esse país vai parar?
Foi tão dolorosa a separação dos meus filhos, rasgou-se o cordão à pistola, minhas entranhas rebentadas por dentro. Fui aos especialistas, tomei remédios. Dra. Suzana foi minha amiga confidente. Voltei à forma finalmente quando deixei meu pai no asilo, consegui o comercial no telefonema da produtora – eu busco sempre o melhor para minha família, mas família é estorvo. Amanhã gravamos, o produtor me ligou hoje, senhor simpático. Já fomos tomar um chope. Tão atraente! Barba grisalha muito bem aparada e cheira bem, como cheira bem, como um lorde inglês. Sua esposa tem muita sorte, não é por nada que escolhe tão bem as roupas, o perfume dele. Tudo muito distinto.
Quando saímos, mal uso batom, mal me perfumo. Sinto que não tenho direito de macular aquele corpo sagrado de marido com minha astúcia de adúltera, procuro o zelo da esposa, da mãe, da profissional – da mulher. Foi a mulher quem conseguiu esse papel nesse comercial. Quando ele veio aqui da última vez, recitei meu texto para ele, ele achou minha entonação bastante boa, bastante natural, bastante sincera: sou mãe, esposa e profissional. No meu dia-a-dia, busco sempre o melhor para mim e para minha família. É por isso que eu uso Felicidade. Faça como eu e tenha Felicidade sempre ao seu lado. Felicidade – quem ama usa!
Um Cobertor
Deixou o olhar cair sobre o aparelho com raiva. Raiva daquele aparelho vermelho, raiva do esmalte vermelho, do casaco vermelho que ela usara tão em vão, tão ridículo. Sentia raiva e se sentia ridícula, ingênua, passada para trás.
Levantou-se da poltrona, sentiu frio. Apanhou um livro da mesa de centro e sentou-se novamente. Passou o objeto entre os dedos, duzentas páginas que não significavam nada, vinte anos que não significavam nada. Não poderia ler, não estava para leituras. Mesmo assim, insistiu. Abriu o livro na primeira página, irritou-se com aquele ritual tão convencional, fechou o livro e o abriu de novo bem na metade, passando os olhos velozes por meia dúzia de palavras que leu sem compreender. Fechou novamente o volume com violência – “ora, tem até graça”.
Decidiu que não podia ficar sentada. Levantou-se e em seguida esticou o corpo para erguer um cobertor, atirado ao tapete num acesso de impaciência ainda uma meia hora antes. Enrolou-se na coberta dos pés à cabeça, prendeu a respiração, desejou arduamente, como se fosse possível, desaparecer naquele tecido grosso tão macio. Como o cobertor a compreendia bem, era só dele que ela precisava naquele instante, de sua proteção, de seu isolamento.
Jogou-se no tapete toda enrolada, como uma lagarta num casulo, e não conteve um choro rasgado. Chorava e sentia-se ainda mais patética, irritante, fútil, onde já se viu chorar por tamanha bobagem, o que era ele afinal, senão um cara como outros tantos milhões de caras naquela cidade cuja existência não lhe era sequer conhecida até dois dias antes. A existência dele ainda não lhe dizia respeito, na verdade. Era uma idiota, e quanto mais se convencia de que era uma idiota, porque aquela cena dramática para platéia nenhuma não passava de idiotice, mais se sentia incapaz de conter as lágrimas; sofria a si mesma, para depois se repreender e sofrer mais com isso, um sistema perpétuo perfeito.
Perfeito era ele.
Conteve finalmente as lágrimas e sentiu-se confusa. O que teria dito de errado? Revisou as palavras uma a uma, porque o registro daquele encontro era nítido como um filme em frente a seus olhos. Era em vão, era em vão, repetia balbuciando, sem muita consciência disto, porque a mente ocupava-se de reviver o momento, o encontro um dia antes. Viram-se pela primeira vez num terraço. Ela na verdade já o tinha visto duas vezes: a primeira fora na festa, horas antes – horas, foram horas entre a festa e o encontro, quem poderia dizer! Ele nem reparara nela naquela festa, ou era um mestre da indiferença fingida. Na segunda vez, ela o vira na iminência do encontro, porque quando ele passou rápido por ela antes de entrar no terraço, não a viu. Mas ela já estava lá, encolhida num canto, sentindo-se como se ele não fosse aparecer mais, mas então ele veio e ela sentiu-se como que renascida, contou uns cinco minutos e saiu para o terraço atrás dele. Justamente o sentimento oposto da tarde chuvosa que agora morria, morria despercebida, sem fazer escurecer mais o céu do que a chuva já havia feito. Só o que escurecia era o coração de Rosana. O coração e o amor próprio. Envolta no cobertor, tudo era só escuro. Sentiu vontade de chorar mais, mas conteve-se. Permaneceu sem se mover por não se sabe quanto tempo, como se sua existência fosse suspensa, como se o mundo fosse esperá-la enquanto ela deixava de existir por um instante, um infinito instante que só fazia sentido para ela. Suspirou. Sentia o rosto quente, o suor escorrendo entre a testa e o cobertor. A impaciência voltou com força, a ânsia, franziu a testa e estalou a língua – “que droga!”, exclamou, “que droga!”. Ele já havia partido àquela hora, certamente para sempre.
Entretanto, subitamente, rasgando o barulho da chuva no meio e fazendo o coração dela convulsionar, o telefone vermelho tocou.