Ressaca de vinho ruim

Chove ouro baço, mas não no lá-fora...É em mim...Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e tôda ela escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...
(F. P.)

Meu holiday começou tão bem! A cabeça explodia. Sobre a mesa, uma bandeja de frutas restava. Sozinha. Me trouxeram uma caneca de leite com achocolatado, thanks god!, honey, you’re so Nice. Era o que eu precisava para vomitar, na verdade, mas agora eu me sinto tão bem. Quase esqueço que não é verão e o dia lá fora tá um asshole. Saca, quando eu lavantar, gosh, eu juro que um dia eu levanto, quando eu levantar eu vou te dar é um beijo, porque tu merece, honey, sim. Agora eu preciso dormir. Sabe, eu durmo e sonho com diversas coisas, você inclusive. Quase não penso muito enquanto sonho, mas sabe como é ressaca moral, é assim que nem um passarinho, melhor, que nem uma gaivota – gaivotas comem lixo, não é mesmo?

Eu poderia me sentir mal pelo que ele sentiu ontem, mas quem disse que eu me importo? Gosto de pensar que eu não estava lá mesmo. Eu não enxergo, onde estão meus óculos, hon?, ah, sim agora eu me lembro bem. Sabe, é engraçado. Prefiro não pensar nisso agora, tenho tanto que fazer e já passa das três, não é mesmo? É impressão minha ou eu cancelei um compromisso à uma hora?

Como chove, não é mesmo? Lembro de um tempo em que não chovia. Eu ia à escola todos os dias, acho mesmo que nos feriados eu ia prescola, lembra? A gente tinha uma professora que era bem estranha, não, na verdade era ela normal demais e isso é que era estranho, sabe, honey, eu não gosto de gente normal demais. Se eu quisesse gente normal em volta de mim comprava um gato pra se esfregar nos meus pés e um televisor muito bom, desses novos, e assinava uma TV a cabo, sabe? Não, gente normal tem demais no mundo, a vida é uma só, quero pessoas interessantes perto de mim. Então, como eu ia dizendo, a gente tinha uma professora, lembra? Era só uma naquele tempo, nem esperavam da gente essas historinhas de especialização, isso não existia, gosh, eu juro por deus que não existia. Enfim, tinha uma professora, sim, mas não é dela que eu quero falar, quero falar da mulher que a substituiu, lembra? Foi uma vez só. Sim, eu me lembro. Ela mandou fazer um texto assim: o título era “eu sou gaúcho”. Que coisa idiota, não é mesmo?, agora eu posso ver. Sabe, ela assustou mesmo a gente, mandou acabar o texto antes do recreio, que quem não acabasse não comia! Imagina! Não queria que a gente comesse, honey! Para mim agora tanto faz, mas eu ainda penso no que fazia aquela velha pensar daquele jeito, por que deixar as crianças sem comer, né? Sabe, é fácil assustar uma criança.

Sabe por que a gente gosta da nossa mãe, dear?, é porque ela cozinha, cara, é por isso: ela nos alimenta, nós amamos a mãe porque ela é a primeira a nos alimentar, é uma coisa de memória instintiva isso, existe isso de memória instintiva?, você que faz psico que me diga. Ou pedagogia. Minha mãe era pedagoga, minha mãe é pedagoga, por que é que a gente tem essa mania de referir-se a nossos pais no passado, nossos pais estão vivos, eles tão aí do nosso lado, cara, posso te garantir. Pois bem, minha mãe é pedagoga. E eu amo a minha mãe, cara. E ela me alimentou. E aquela mulher que substitui a professora, como tudo é claro agora!, aquela mulher não tinha mãe, aquela mulher não foi alimentada, nem era pedagoga, por isso que ela queria nos privar disso, my dear, é muito lógico, não podemos nem culpá-la, só podemos lamentar por ela, chica.

Então, ela deixou metade das pessoas sem merenda, lembra? Eu fui um desses. Pior é que eu quase acabei o texto em tempo, cara, ia acabar bem na hora do recreio, mas daí teve um cara que entregou logo antes de mim, minutos antes, segundos!, eu tava quase me levantando pra entregar, honey, daí ele entregou e ela esbravejou, mulher dragão, cara, horrível que era: lembro do grito, lembro da cara vermelha do demônio, cara, sim, pra gente ela era nada senão o demônio. Ela disse assim “MAS O QUE É ISSO, VOCÊ É BURRO”, sim, ela falou em maiúsculas, cara, “MAS O QUE É ISSO, VOCÊ ESCREVEU UM TEXTO CHAMADO ‘EU SOU GAÚCHO’ QUE NEM É SOBRE VOCÊ?”. Gente, como aquela mulher era bruta, uma verdadeira embrutecida pela falta de mãe dela, cara, só pode ser – desde quando, me diga, desde quando o título do texto implica a pessoa do texto, cara?, que mulher asquerosa, mesquinha, mulher-bagre, bruxa decrépita, cara, apodrecida por dentro de fazer isso com criança! E meu texto era em terceira pessoa, cara! Como eu queria voltar lá, gosh, eu queria, ia fazer um texto em quarta pessoa e ia ver o que é que ela ia dizer. Quebrava a cara dela, cara, ou melhor, jogava um balde d’água, que nem a Bruxa do Oeste, cara, como eu tinha medo da mulher. O medo não tá com nada, cara.

Honey, você se ofende se eu te chamo de cara? É que é o meu jeito, sabe, me exalto assim, só um pouco, e já perco a elegância, dear, já perco a polidez.

Mas não tá claro agora, chica?, aquela mulher não foi alimentada. Como é verdade isso! Quanta gente mal alimentada tem por aí, não é verdade, cara – ai, olhaí o cara outra vez, tenho que parar com isso, te considero, dear, te considero bastante. Mas que eu queria dizer era isso mesmo, sabe, como tem gente que não foi alimentada.

Sabe, minha mãe, pedagoga, eu amo minha mãe, cherie, mas ela pensa que amor é dinheiro. Não tão assim, é menos trágico, ela me deu carinho, me deu atenção, mas na cabeça dela amar a família não é senão se sacrificar pra sustentá-la. Daí eu te digo, darling, tem gente que não é alimentada de comida, tem gente que não é alimentada de arte. Arte é amor, cara. O que é a estética senão criar o belo, e o que é o belo senão aquilo que a gente é capaz de amar? É assim que o feio vira belo, honey, todo mundo sabe disso desde pequeno. Minha mãe me deu atenção e conseguiu me dar arte, cara, ela conseguiu! (Prometo que paro já de dizer cara.) Ela conseguiu, ela que passou fome de arte, e agora eu sei que as pessoas precisam de comida, mas elas precisam ser alimentadas de arte também, sweetie, porque quem não o é fica que nem a minha avó, que não alimentou minha mãe com arte, que nem a mulher-bagre, fazendo aquilo com criança, porque não compreende arte, entende? Minha mãe era boa, ela não recebeu amor, honey, mas ela soube me dar; agora ela não compreende, dear, não compreende a arte que ela mesma me deu, a minha arte, a minha necessidade de arte, a necessidade de alimentar meus filhos com arte, saca?

Ah, ainda chove, honey. Chove ouro baço, lá fora e aqui dentro, e a hora é absurda, mas nos pega de jeito. Você dá licença deu ir num compromisso, meu amor, que eu já cancelei um hoje? Vou sair na chuva, mas te prometo que pego um táxi para ti. Você me ama, honey? Eu sei que sim, se não soubesse não pegava um táxi, ia a pé pra casa e não me importava comigo mesmo. Sabe que se eu me importo comigo é porque estou me preocupando de ti, né?, porque tu me ama. E eu sei disso. O resto, dear, é ressaca. Ressaca moral, ressaca de vinho ruim.

Sordidez

A sordidez é um inseto cuja picada é boa, boa demais para fazer bem. A sordidez me pegou desprevenido outro dia, na rua, à noite. Disse coisas que eu não devia para uma certa pessoa a quem eu devia minha existência, a doce Vanessa. Ela me esmagou o inseto da sordidez no meu pescoço. Enojei-me, arrependi-me, mas tarde já era. Sozinho, vaguei pela rua escura e fria, até que entrei nesse bar.

Não conhecia ninguém. Era um lugar sujo e mal iluminado. Não precisava já ter estado ali para conhecê-lo profundamente, porque igual àquele havia centenas, dezenas dos quais que eu já havia freqüentado só no bairro onde moro. Passei pelo balcão e pedi vodka, fui ao banheiro e quando voltei fui servido na mesa mais ao canto, junto a uma janela. Por ali eu via, não muito bem, alguns vultos que passavam pelo inverno que fazia lá fora. Ali dentro eu sentia calor.

Meu copo já havia sido esvaziado e enchido de novo uma boa meia dúzia de vezes quando entrou um casal e ocupou a mesa ao lado. O homem sentou-se de frente para mim, rindo e falando alto. A mulher era quieta. O mesmo homem que me servia as vodkas serviu uma taça de vinho a ela e algo que eu não pude escolher se era uísque ou conhaque para ele. Ela levantou-se de repente, sem tocar na taça. Ele a segurou pelo braço de forma rude, mas a deixou ir depois de algumas palavras em voz baixa. Uma vez sozinho, o homem encarou-me. Sorriu e disse qualquer coisa que eu não compreendi, não escuto muito bem, mesmo sóbrio. Eu sorri e concordei. Ele irritou-se. Levantou e sentou novamente ao meu lado. Perguntou se eu a queria, a mulher que o acompanhava. Eu não entendi e perguntei em que sentido. Ele riu. Quando ela voltou, levantou-se e antes que ela tomasse de volta seu lugar à mesa ao lado da minha, disse qualquer coisa ao seu ouvido que a fez pensar e decidir sentar-se ao meu lado.

Ela me pediu um gim. Chamava-me de “meu bem”. O homem nos olhou da outra mesa e sorriu, indo sentar-se ao balcão do bar em seguida. Eu sorri e expliquei que não estava entendendo bem o que se passava. Ela perguntou se eu queria sair dali. Eu quis saber o que o homem que a acompanhava acharia disso. Ela riu, mostrando os dentes amarelos, mas perfeitamente colocados. Ele nem vai perceber, foi o que ela me respondeu.

Deixei uma gorjeta ao garçom embaixo dos copos de gim pela metade e saí de braços dados com ela para a madrugada muito fria. O homem que estava com ela sequer notou que havíamos saído, estava de costas para a porta.

Eu perguntei aonde ela morava, ela não respondeu, perguntando se eu não preferia ir para a minha casa. Pedi desculpas e disse que não poderia, que meu avô dormia cedo. Ela consentiu que fôssemos de táxi para a casa dela, cujo endereço revelou, ficava "perto da Azenha", que não era tão longe afinal. Naquele momento eu hesitei, intuindo tratar'se de uma atitude tola sair dali de perto da minha casa, da vizinhança boêmia que eu conhecia muito bem, para meter-me na casa de uma estranha, que primeiro estava acompanhanda, mas em seguida bebia gim comigo, arreganhando grandes dentes amareos. Ela insistiu docemente. Não era feia, afinal. Ainda assim não pôde me convencer, eu a coloquei num táxi sozinha, argumentando gentilmente muito cansaço, e voltei a pé para a casa, não sem deixar qualquer quantia com ela (o que eu teria achado um exagero ofensivo se não tivesse tomado tantas doses de destilados). Dormi um sono inquieto, sonhei que saía pela janela flutuando, mas caía ao avistar a primeira árvore. Lá fora amanhecia e subia uma neblina que cobriu minha rua toda.

Acordei muito tarde. Fui à casa da mulher que eu amava, para me desculpar, mas ela não estava. Saiu com os pais para a igreja. Atendeu-me a irmã esbaforida, que depois eu soube que estava com um rapaz com quem se encontrava sempre que a família estava na igreja e que a abandonou quando soube que esperava um filho dele. Teria não mais que quinze anos quando desse episódio.

Tive o cuidado de parar na padaria e comprar um bolo do gosto de meu avô antes de voltar para a casa. Todas as comadres do prédio me esperavam na sala de estar (uma delas eventualmente limpava e cozinhava para nós, não pela insignificante quantia que meu avô lhe pagava, mas porque gostava do velho e era o mais próximo de uma amante que ele tinha). Chamaram-me de irresponsável, que não podia deixar o velho sozinho em casa daquela maneira. Eu mostrei o bolo e disse que fui buscar algo que comer. Nisso o velho acordava e entrava na sala todo despenteado mandando as velhas embora e me desejando uma boa noite. Recolheu-se em seguida levando o bolo que eu lhe comprara para o quarto. Fiquei sem nada para fazer até às nove horas, acabei assistindo às notícias. A âncora anunciou um homicídio que acontecera no meu bairro na madrugada anterior. Achei estranho que estava na rua e não vi movimentação nenhuma. Mostrou-se o bar do assassinato: era onde eu havia estado, exatamente! A vítima não se havia identificado, era um homem, tinha seus quarenta anos e muito dinheiro na carteira. Entrou no bar um homem de rosto coberto e atirou duas vezes na cabeça dele, deixando o bar antes que o dono do lugar assimilasse o ocorrido. Preparei uma dose de vodka barata que tinha em casa. Às nove, quando bateu o Pontes na porta do apartamento, despedi-me do meu avô e logo fui dizendo ao meu amigo que tínhamos o que fazer naquela noite, antes de ir a qualquer lugar. O Pontes me perguntou a respeito de Vanessa, eu disse que não era ela que ocupava meu pensamento naquela hora, mas, se isso o fazia contente, havíamos terminado. Ele não falou mais do assunto, perguntou aonde íamos. Respondi que tinha negócios a tratar com uma dona "perto da Azenha". "Como assim?", quis saber ele, eu expliquei tudo desde o início. Ele riu, eu "não tinha mais o que fazer". Julio Pontes era bom amigo, e já havia bastante tempo, sabia que qualquer coisa fora do normal me instigava, que eram essas coisas sem nexo com a realidade habitual que me faziam desperto e excitado, que todo o resto me aborrecia muito, as coisas quotidianas, os mesmos lugares de sempre e as pessoas a quem se vê todo o dia. Fomos a pé pela avenida até o hospital, mas eu não sabia ao certo onde ela morava. Sentamos num bar e o Pontes me perguntou o que exatamente eu queria com ela, se era pelo puro prazer da especulação que ali estávamos; eu respondi negativamente. Na verdade eu não tinha nada pensado, queria saber mais dela, ao menos, do homem que morrera vítima de dois tiros na madrugada e mesmo se ela sabia do que havia acontecido depois que saímos de lá. O Pontes me chamou de louco e sorriu, como sempre, mexendo os ombros e tomando mais um gole de cerveja. Agradava-lhe qualquer lugar em que pudesse beber longe das vistas da noiva.

Lá pelas onze e meia ele se aborreceu e me convenceu a fazer qualquer outra coisa que não fosse esperar por uma mulher que eu não conhecia num bar sujo, sem saber se ela de fato passaria por lá. Pagamos a conta e enquanto meu amigo se distraía com qualquer coisa junto ao balcão, eu, parado junto à porta, a vi do outro lado da rua. Chamei por ela. Ela parou e me viu.

Atravessei correndo, semáforo fechado para pedestres, deixando o pobre Pontes para trás, e a cumprimentei com um aperto de mão. Ela gelara minha tentativa de abraçá-la. Estava com uma aparência cansada, de vestido marrom e casaca nada elegante, bem diferente da roupa que usara na madrugada anterior; disse que estava com pressa. Perguntei se ela se recordava de mim e como ela estava, que fiquei sabendo do destino do homem que a acompanhava. Ela olhou primeiro para mim, franzindo a testa incrédula, "o que o faz pensar...". Suspendeu a frase pela metade e girou o pescoço, desta vez olhando em volta, tensão mal disfarçada com um sorriso nervoso. Disse que estava tudo bem, que o homem morto era seu irmão e que tinha dívidas de jogo. Emendou que era tarde e tinha que voltar pra casa. Quis saber onde ela morava exatamente, ela irritou-se e me largou uma despedida gelada, saindo rápido e olhando para os lados, protegendo o pescoço do frio com a gola do horroroso casaco. Nisso o Pontes já havia atravessado a rua e veio me perguntar o que havia. "Mulher louca", respondi, e já estávamos indo pra casa quando um carro invadiu a calçada e atropelou a mulher que segundos antes estivera ao meu lado. O carro deu ré e passou por cima dela estirada no chão, enquanto o Pontes me segurava, tão estarrecido quanto eu, antes de acelerar e dobrar a primeira esquina bem acima do limite de velocidade. O Pontes quis guardar a placa, eu corri para a mulher ensangüentada, enquanto as pessoas em volta davam gritinhos ou clamavam que alguém deveria chamar a polícia. Uma ambulância chegou rápido, respondendo ao chamado do Pontes, o sensato, mas já era tarde. Ela estava morta e eu sequer sabia seu nome.

Depois a polícia quis saber se estávamos com ela, o que sabíamos da mulher, entre outras coisas. Uma delegada veio conversar comigo e com o Pontes, disse que a mulher se chamava Lisandra e que era manicura num salão da zona leste até algumas semanas antes, quando parou de ir trabalhar. Contrariando os conselhos do Pontes, eu contei à delegada tudo o que se passara desde a noite anterior. Ela anotou meu endereço e saímos da delegacia às três horas. Fomos ainda a uma festa perto do prédio do Pontes, mas eu não fiquei muito tempo, fui para a casa deixando-o bem acompanhado (ou não, depende do que a noiva dele acharia da moça se a visse), e fui para a casa. Não dormi antes das seis, no entanto.

Acordei novamente muito tarde e saí para almoçar com o velho, que me esperou acordar movido pela sua consideração carinhosa habitual para comigo. Era domingo. Havia um ar saudável nas ruas que não combinava com o gosto que eu tinha na boca. Limitei-me a responder com um sim ou com um não todas as perguntas do pobre do velho. Sempre penso que ele deve se sentir muito sozinho vivendo comigo, que sou um lacônico. Decidi não falar nada sobre os acontecimentos noturnos, primeiro para não ouvir repreensões, segundo porque tinha preguiça de entrar em detalhes indispensáveis para a compreensão da história. Deixei-o na praça, depois do almoço, com uns outros idosos conhecidos e fui ao Pontes, mas esse não estava em casa. Voltei para o meu apartamento e fiquei no meu quarto, lendo qualquer coisa para a faculdade sem prestar atenção. Ouvi o velho chegar e depois me desejar boa noite do corredor. Dormi pouco depois da meia-noite, entediado. Na manhã seguinte tinha muito que fazer, não tive tempo para pensar em bobagens até as seis da tarde. Em casa, me haviam deixado um recado da delegada para comparecer à delegacia assim que pudesse. Meu avô quis saber do que se tratava, o que tinha acontecido de grave; respondi que não era nada, era só sobre um atropelamento que eu tinha presenciado outro dia e que depois lhe contaria tudo melhor. Peguei o primeiro táxi e desci em frente à delegacia, há duas quadras somente do lugar do atropelamento. A delegada me recebeu simpaticamente. Contou-me que não se via nenhuma ligação entre os dois homicídios, a mulher e o homem não eram mesmo parentes, e que, sim, o caso da mulher estava sendo tratado como o assassinato que fora. Disse que não me preocupasse, que seria chamado somente como testemunha, a fim de contar o que vira, mas que isso ia demorar mesmo um pouco para acontecer. Perguntou se eu tinha certeza de que se tratava da mesma mulher. Eu não tinha nenhuma dúvida. Queria que ela me dissesse quem era o homem. Relutante, confessou que não sabiam seu nome todo, que era conhecido pelo codinome "Tucano", que vendia peças de carros usadas e que eventualmente teria ligações com prostitutas de alto nível da capital. Fui para a casa meio que decepcionado por ter recebido tratamento tão marginal no caso. Testemunha vulgar? Não era eu o único elo de ligação entre as duas mortes?

Cheguei ao apartamento, demorei um pouco para achar a chave no fundo do bolso do casaco. Ao experimentá-la na fechadura, porém, não pude abri-la. Forcei várias vezes, sempre com medo de quebrar o mecanismo ou a própria chave, até que desisti, pondo-me a esmurrar a porta sem muita esperança de que o velho, mais surdo que eu, levantasse da cama para abrir a porta para mim. Depois de certo tempo, perdi a paciência. Sentei-me no corredor, encostado à porta. Quando uma das comadres vizinha de porta botou a cabeça para fora, esqueci por um momento a simpatia cínica que dispensava às velhas do bairro e a mandei à puta que a havia parido. Minutos depois, um carro de polícia parou em frente ao prédio. O policial entrou e perguntou-me se eu era morador do edifício. Disse que sim, que meu avô era homem doente, que a fechadura estava emperrada e que não havia quem abrisse. O policial nem chegou a tentar abrir, imobilizou-me quando me levantei e me levou para a rua. Do lado de fora do prédio, quis saber o que estava acontecendo, mas o policial me respondeu com um soco que me tirou um pouco de sangue da boca, mas nenhum dente, felizmente, e mandou que eu saísse de perto daquele prédio, ou seria diretamente enviado ao presídio. Decidi voltar mais tarde, entendendo que não haveria possibilidade de diálogo com o soldado.

Pensei em ir a algum lugar comer alguma coisa, que tinha esquecido de comer no afã de responder ao chamado da delegada. Escolhi a casa do Pontes, na cara dura. Chegando lá, uma vizinha me disse que o rapaz tinha ido à casa da noiva. "Droga!", exclamei em voz alta, esqueci-me dessa mania que os noivos têm hoje em dia de morarem um na casa do outro durante a semana. Tive muita inveja deles, moravam sozinhos, e não com a família como eu e a Vanessa. Voltei pros arredores da minha casa. Adoraria a idéia de ficar na rua até tarde no inverno em qualquer dia da semana, exceto na segunda, porque a terça era o dia que começava mais cedo na minha semana, tinha compromissos a partir das oito da manhã, e também porque nenhum bar abria na segunda. Encontrei por sorte um restaurante onde um chapista compadecido dispôs-se a me preparar um sanduíche, mesmo estando prestes a cerrar as portas.

Sempre imaginei que fazer se um dia ficasse sem abrigo por uma noite. De vez em quando passava por uma árvore, ou por um monumento e pensava que me poderia esconder ali se ficasse sem teto naquela cidade. Jamais consideraria isso seriamente, concluí, mesmo naquela situação estranha. Fazia muito frio, mais do que o normal à noite, embora desconfiasse que fosse a falta de álcool que me fizesse sentir assim.

Mal terminei o sanduíche, me escorraçaram da lanchonete como eu previ que fariam. Decidi tentar entrar em casa mais uma vez. Quando me aproximei do prédio, porém, um homem ,cujo rosto não vi bem e que deveria estar à minha espera desde mais cedo, me atacou, segurando-me pelo braço e socando meu estômago. Do nada surgiu outro, por trás de mim, que me segurou para que o primeiro me pusesse sem sentidos depois de um bocado de pancadas na cabeça.

Acordei com muita dor num chão molhado. Tremia. Tentei dizer alguma coisa, ouvir minha própria voz, mas não conseguia, não podia me convencer se por debilidade ou por falta de coragem. Estava muito escuro. Havia música, alguém escutava rádio perto de onde eu estava. Não me mexi até que veio um homem, o qual eu não reconheci, que me pegou pelo braço e me levou para uma outra sala, onde havia o rádio que eu estivera escutando e mais três pessoas: um homem que eu não conhecia, a mulher que eu mesmo vira morta e o homem cuja notícia da morte eu vira pelo jornal. Esse último riu olhando para mim, como se sorisse. Eu baixei a cabeça, atormentado. A mulher foi a primeira a se aproximar e levantou o meu queixo, me encarando. De perto pude compreender que não era a morta que eu vira, mas, sim, a delegada, a quem eu encontrara horas antes. Não tinha até então, notado a semelhança entre as duas. Não disseram nada por alguns instantes. A delegada balançou a cabeça e estalou a língua. O desconhecido fez um aceno com a mão e o homem que me buscara no quarto úmido me deu um empurrão na direção de uma porta que dava para a rua. Vi que se tratava de uma casa em meio a um descampado sem nenhuma iluminação em redor e umas manchas escuras ao longe que podiam ser matagais. O homem me deu um chute nas costas e eu entendi que devia sair dali o mais rápido que pudesse. Mesmo sem nenhuma força pude correr, corri como nunca em minha vida, desesperado, sem saber sequer se corria em linha reta. Corri por um tempo que pareceu bem se tratar de horas, até ouvir uma explosão e em seguida uma outra, e sentir um calor molhado e viscoso na batata da perna e outro nas costas, caindo de borco na grama úmida, sentindo essa umidade misturar-se ao suor do meu corpo muito desagradavelmente. A terra molhada invadiu meu nariz, meus olhos e a minha boca. Demorei ainda um momento ou dois para imaginar e compreender que se tratavam de tiros. Nunca havia sido baleado antes. Pensei em Vanessa, pura, de camisola, a dormir numa cama limpa e quente com raiva de mim, e senti pena de mim mesmo. E nojo. E um pouco de remorso também por todas as sórdidas coisas que havia dito ou feito em minha vida.

A Profunda Cicatriz

Havia quanto tempo eu dissera que já não podia mais? Era exatamente assim que eu me sentia na adolescência, quando minha mãe cozinhava o jantar. Ela chegava do trabalho sempre tarde e eu me recusava a comer qualquer coisa que não fosse a comida dela, numa auto-disciplina que não mais existe (acho que se perdeu enquanto eu cursava a universidade). Eu tinha muita fome, sofria com a fome, minhas entranhas se reviravam e todo o meu corpo tremia com aquele desespero semelhante ao de quem se afoga. Então minha mãe chegava, e chegavam ao meu quarto os primeiros ruídos de cebolas fritando e também os primeiros cheiros da refeição sendo preparada, iguais aos primeiros cheiros de refeição que eu percebia do berço, quando nem tinha memória ainda para cheiros, e antes ainda disso, consideradas as memórias genéticas de um óvulo que já existia em minha mãe quando ela ainda era somente a filha da minha avó, cujo cozinhar possuía os mesmos primeiros cheiros. Era um alívio, não era um alívio, era um duro soco em meu estômago, era um agravamento do desespero da fome, como uma febre que piora muito antes de melhorar. Dados uns dois quartos de hora, a cozinha silenciava. Minha mãe me chamava pelo nome, do corredor. Ouvia o resto da família pegando os pratos, barulhos de vidro e metal, pequenas conversas. E então eu me acalmava: era o verdadeiro alívio. Eu sabia que a comida estava posta, a fome tornava-se fácil de suportar, uma companheira desimportante. Então eu não ia jantar, ficava no meu quarto, porque podia enfim me concentrar em algo maior. A fome continuava lá, mas era porque eu queria que ela estivesse lá. Eu assumia o controle e a tortura não mais tinha efeitos sobre mim. Minha mãe enlouquecia e vinha me buscar a tapas e só assim eu comia, não temia mais a fome, não temia mais ser esquecido pela minha mãe. Era exatamente o que acontecia agora, com Fernanda.

Havia muito tempo eu disse que não podia mais. Antes de concluir que o casamento chegara ao fim, tudo era suplício. Depois que falamos sobre isso e aceitamos que nada mais existia num assombroso acordo racional, porque éramos assombrosamente racionais aos vinte e cinco anos, tudo ficou fácil. Tudo era simples e viver não pesava mais sobre nossos ombros. Tanto nos entendemos melhor que eu não saí de casa, ela não saiu de casa, ficamos os dois amigavelmente juntos, dependíamos já um do outro desde que éramos crianças, mesmo tendo nos conhecido somente aos dezoito anos. Não consigo entender hoje em dia o que foi que nos levou ao casamento, embora me lembre nitidamente que à época tudo fez sentido. Éramos dois universitários, eu era de áries, ela era de leão, ela tinha um gato chamado Pétya, eu queria um cachorro pra chamar de Ródia, fomos morar juntos. Minha mãe me amaldiçoou, antes de morrer agonizando num câncer de pulmão. Não derramei uma só lágrima, o que me fez descobrir que a verdadeira tragédia é seca, a verdadeira dor não tem nada de úmida, é seca e vazia e solitária. Ao lado de Fernanda, a verdadeira dor fora solitária. Mas a solidão ao lado de Fernanda não representava mais nenhuma dor então e era isso que me intrigava, mas me intrigava bem pouco, que minha alma andava tão boa que não havia espaço para a escuridão de uma dúvida no meu rosto cansado de satisfação. Não foi estardalhaço quando Fernanda passou a não dormir mais em casa uma noite ou outra. Ela tinha seus amantes, eu tinha os meus. Completávamos, dividíamos o sono, e aquilo não era senão amor, despido de paixão, essa motriz sensual que termina, que só pode terminar em destruição e é por isso que agora eu sorria. Paixão, só fora de casa. Dentro de casa, restava apenas o aroma floral de Fernanda, ainda lânguido, ainda atraente, mas terno, de um modo que não houvera sido antes: antes era quente, muito quente, queimava. Agora era um conforto viver ao lado de Fernanda.

Só tinha um medo, um medo inconsciente, que eu demorei a perceber que existia, embora de certa forma o tivesse pressentido quando aconteceu das primeiras vezes. O medo era não ter mais Fernanda, perder Fernanda para um ideal burro de felicidade que ela pudesse ainda conservar que a fizesse me deixar por alguém que não lhe daria mais que um membro disfarçado de carinho. Decidi que eu deveria morrer ao lado de Fernanda, mas uma mão cutucou meu ombro e escarneceu de mim, “você sabe muito melhor do que ninguém que o peso das suas resoluções é o de um pêlo de rato”; a mão era a minha covardia.

Estava decidido, queria um final trágico para a minha história com Fernanda. Um final trágico e seco, como a morte da minha mãe, a respeito do qual não se derramaria uma lágrima. Eu queria que, após as conseqüências de minha tragédia, o tempo respeitasse e soubesse guardar a minha loucura. Só me faltava mesmo a coragem. Morávamos sobre o mesmo teto e eu a amava enquanto as coisas fossem assim. Se ela me deixasse, me apaixonaria. Eu somente esperava por isso, esperava pela oportunidade de me apaixonar de novo por Fernanda, para que a paixão pudesse nos destruir, para que eu pudesse nos destruir. Delirava nesses pensamentos nas noites em que ela não voltava pra cara, quando eu sabia que ela passava a noite com algum homem novo. Eu perdia aos poucos a capacidade de sair, de me relacionar com outra pessoa, pelo menos na intimidade do sexo. Nas noites em que ela dormia em casa, eu dormia tranqüilo e suspirava durante o sono.

Num dia aconteceu, de repente, como essas coisas simplesmente acontecem – e por isso muitas vezes levamos um tempo enorme até compreendê-las e também as suas conseqüências. Fernanda não voltou pra casa, mas isso era normal. Dei-me conta de que ela levara quase todos os seus pertences somente na manhã seguinte. Fiquei desolado. Não houve telefonema que me pusesse para fora do meu quarto. Inquieto na cama, eu arquitetava, delirava, partia do fogo da paixão que agora violentamente me consumia, levitava para um desprendimento de morte que me desapegava à matéria e tombava, por fim, como um cadáver, no lamaçal do medo, da vergonha, da decepção, do sangue, que ainda não era meu, nem de Fernanda, nem de ninguém, era de um animal, um animal que morava em mim e que cuspia e guinchava e estrebuchava em desespero, até que eu levantasse da cama suado e preparasse um café, para depois retornar à vigília de conspurcar a memória da maldita até altas horas da madrugada, repetindo o ciclo de miséria. Precisava de um plano. Somente. Um plano de fuga, para escapar do círculo vermelho, para deixar-me em paz com Fernanda. Mas essa luz eu não alcançava. Decidi, finalmente, às luzes de uma aurora que, essa sim, teimava em perturbar a plasticidade do céu daquela hora (perfeito para mim, em sua coloração mais escura - que é exatamente a cor que tinge o céu na proximidade da aurora), decidi com um fervor de achado científico que deixaria de lado qualquer plano, que deixaria agir o destino, que era assim que eu sabia trabalhar melhor, sem contemplação, que a contemplação para mim era só sofrimento.

Fui visitá-la em seu lugar de trabalho sem pré-compreensões, sem rotas preestabelecidas. Fernanda pediu à secretária que me mandasse aguardar, na certa com a esperança de que eu desistisse de atordoá-la com algum drama dos que me acometiam com freqüência e que ela não só conhecia muito bem como houvera aprendido a subestimar. Aquilo eu não aceitava. Fui o mais persuasivo possível, conhecia bem aquela secretária indecorosa, muitas vezes ela sorrira para mim, muitas vezes tentara lançar sobre mim o que para ela era fácil de lançar sobre todos os outros homens. Eu ria dela em pensamento, achava-a ingênua; ela não sabia, nem tinha como saber que para mim era só Fernanda, jamais tive desejo, carnal ou espiritual, por mulher nenhuma que não fosse Fernanda, não tive casos com mulheres além dela. Permiti a mim mesmo esse pequeno embuste; fingi, muito calculadamente, possuir aquelas artes de sedução que nunca me tinham sido naturais, sorri, retribuí o olhar da secretária, fiz com que ela pensasse que conduzia a situação, sutilmente. Deixei um gancho numa palavra, dei a ela esperanças sem precisar falar muito, ela me deixou fazer uma surpresa para Fernanda. Entrei na sala.

Minha paixão mais fulminante estava ao telefone. Ela ria, inconsciente do meu desespero sofrido. Como pareciam irregulares aqueles dentes agora, que feios e amarelos, escancarados na boca cruel de advogada de Fernanda. Ela continuava a rir, afetada. Os óculos eram de um fetichismo vulgar, acetato insensível às linhas do rosto. Ela ria tanto que demorou a perceber que eu entrara. Como doeu a vergonha da estranheza de Fernanda, seu riso horroroso transfigurou-se: era uma carranca indignada, "O que você pensa que faz aqui, não deixei entrar, chamo os seguranças". Olhei para a luminária, pude ver o fogo consumindo a nós dois, a tragédia final, o circo, a morte seca que eu imaginara. Fernanda por fim notara meu desespero, meu olhar tresloucado que revelava a que eu vinha, que entregava que eu era capaz de qualquer coisa. Sua irritação tornou-se terror numa mudança que foi muito sutil no olhar, ela fora paralisada. Era tão patética quanto eu era naquele instante, temendo, sentindo o que sucedia numa intuição de bicho, cadela que era. Num segundo compreendeu que de nada adiantaram todos aqueles anos de dedicação à profissão, à sua própria formação, assim como tiveram sido inúteis o passar maquiagem todos os dias em frente ao espelho. Soube sem equívoco que a vida encontrava-se na iminência do fim. Foi quando escorreu uma lágrima do olho vidrado.

Por um momento hesitei, meu ânimo doentio arrefeceu-se como um balão que estoura e de repente perde o sentido de ser. Estupidificado, não percebia o significado daquela gota, escorrendo pelo rosto empoado de Fernanda, marcando como uma cicatriz; só que, ao contrário das cicatrizes, que são marcas impuras de uma violação na perfeição pacífica da pele, aquela lágrima lavava, purificava, mostrava a verdadeira pele por baixo da máscara, humanizava. Era uma cicatriz ao contrário. Descobri naquele instante que eu não amava Fernanda, que eu não era apaixonado por Fernanda, eu era um ser humano e assim ela também o era. Saí do escritório trôpego, a secretária não entendeu nada. Não olhei para trás, guardaria para sempre a lágrima de Fernanda como a imagem final, o rompimento. Parei na calçada em frente ao prédio sem saber o que fazer com a minha vida, com aquela liberdade que esmagava minha existência: eu era livre de Fernanda. Eu era livre. Podia me jogar à frente do primeiro ônibus que passasse na avenida, mas não o faria. Eu era um covarde, suscetível às emoções humanas, como são todos os meus companheiros de raça. Voltei para casa, tratei de vender logo aquele apartamento. Mudei de cidade, de emprego, quase mudei de profissão - contudo, àquela altura da vida, resolvi que não há que se fazer radicalismos. Eu tinha os pés na terra afinal, o que era um alívio. Ainda quando passo por uma ponte, penso em me atirar dela, mas é com leveza que formo esse pensamento. Passo a rir de mim mesmo. Sou mesmo patético.