1.

- Cara, olha que coisa genial: vou pegar para te mostrar.
Deixou-o só, sentado na saleta claustrofóbica, entulhada de dois sofás encardidos, uma estante caindo aos pedaços de cupim e uma mesa quebrada de computador em que se equilibrava a muito custo um modelo informático antigo, todo cinza e muito sujo, zunindo no silêncio do apartamento.
- Posso tomar um copo d’água?, perguntou, e o dono da casa gritou que sim, que podia pegar na geladeira.
Levantou-se e buscou a água, tendo o cuidado de servir-se da garrafa que estava lacrada, porque o amigo era desses que tomam a água no bico e, portanto, se ele se servisse da garrafa que já estava aberta, a água lhe pareceria ter gosto de cuspe.
Seu anfitrião já vinha animado do quarto quando ele voltou à saleta, e trazia consigo uns papéis desalinhados com notas diversas escritas a lápis.
- Este – disse o amigo numa solenidade que ele não conseguiu levar a sério – é um esboço do meu primeiro romance. Vê-se que vai ser uma obra prima. Nasci para escritor, me dói que tenha demorado tanto a perceber meu real talento, meu destino, minha razão de vida.
O amigo lhe sorria calorosamente, sorriso que ele retribuía com um silêncio permissivo, ainda que constrangido.
- Estou te falando – continuou – se Camus estava certo, então a minha escolha é não cometer o suicídio, pelo menos não antes de terminar essa obra. Depois, só o que precisará viver será meu nome, meu corpo poderá apodrecer se assim Deus o quiser.
Falava por falar, pela força da expressão, rábula que era. Não acreditava em Deus, e Ramiro bem o sabia porque era ateu também, e por isso encolheu-se, todo irônico: “Eduardo dramático”.
- E qual é o enredo? – perguntou sem emoção – Me desculpa, Eduardo, mas tu sabe que eu não vou ler teus garranchos.
Eduardo achou graça na franqueza e riu obscenamente. Ramiro irritou-se. Desprezava aquela indulgência, desejava ferir o amigo, fazer contorcerem-se de dor aqueles lábios que não sabiam o que era a melancolia, quebrar os dentes brancos e perfeitos acostumados a conquistar confianças alheias. Sentia-se incapaz, no entanto.
- Certo, não precisa ler. É sobre uma cidade...
- Uma cidade? – perguntou um Ramiro contido, querendo demonstrar ceticismo.
- Sim – Eduardo levantou-se com energia e se botou a explicar sua história, através de gestos, perdigotos e grunhidos, assemelhando-se, na ideia de Ramiro, a um animal selvagem, grande e estúpido, que precisava ser protegido de si mesmo – É sobre uma cidade que, no verão, é invadida por uma fumaça negra, – prosseguiu; falava com dramaticidade – uma fumaça estranha e sobrenatural que toma as ruas e as casas, engole a luz do sol e deixa tudo frio de repente. Um frio asfixiante de humo. Aí as pessoas que vivem na cidade se isolam uma das outras e vão enlouquecendo aos poucos. Veja que é necessário que se isolem, para que percebam, de uma vez por todas, que já eram isoladas, esmagadas pela rotina, sabe, pelos pequenos traumas, pelas coisas sem importância que se repetem e se repetem, por suas reclamações insinceras de tédio, porque, na verdade, elas gostam do tédio, elas amam o tédio, o tédio é seu deus, pois, se deixam de acreditar no tédio, de falar do tédio, de cultuar o tédio em seus perfis no Twitter, então toda a existência que elas conhecem está comprometida, entende? Elas se conhecem através do tédio, o tédio é o que lhes dá razão e sentido.
- Entendo, – refletiu Ramiro – mas não sei. Acho que talvez essa tua ideia de tédio seja um tanto quanto batida, um tanto quanto lugar comum, sabe? Senso comum.
- Tu acha?
- Acho. Não sei se gosto.
Silêncio. Eduardo sentou-se ao lado de Ramiro, que podia sentir seu desapontamento, as células murchando, o entusiasmo se esvaindo, a expiração derradeira do orgulho moribundo. Adorava ser espectador daquela agonia e gozava a dor do outro com bem disfarçado triunfo.
Eduardo ruminou a resposta negativa do amigo por algum tempo, depois o encarou com seus olhos enormes e escuros. Pousando a mão no ombro de Ramiro, numa atitude carinhosa que era bem do seu feitio, suspirou.
- Cara, tua opinião conta muito para mim. Sério mesmo que tu não gostou?
Ramiro atrapalhou-se com aquela demonstração ridícula. Impertinência, impertinência. Franziu a testa. Desesperado, desvencilhou-se do calor da mão e tentou explicar, sem jeito, que não era bem assim, não fora bem isso que quisera dizer. O argumento era muito bom, sim, só o que era preciso era lapidar um pouco a justificativa.
- Aliás, para que se prender a uma justificativa? Deixa o enredo justificar-se por si, a ideia toda é muito boa, a história tem potencial – completou e esforçou-se para mostrar um sorriso encorajador. Eduardo deixou-se consolar como um menino, mas a frágil casca dentro de si já se quebrara sem conserto. Ramiro sabia, fora ele quem provocou o estalo. Fizera de propósito e agora sentia remorso.
- Bem, pode ser – concluiu Eduardo, recuperando de uma só vez o tom enérgico que lhe era característico – Enfim. Estamos é perdendo tempo. Vou tomar um banho rápido e em seguida saímos. Precisa de alguma coisa?
- Não, fico bem aqui.
- Ótimo, volto já.
Ramiro, já sozinho, engoliu o que restara de água no copo num só gole, a garganta parecendo que ia rasgar. “Imbecil”, pensou, resistindo a declarar, ainda que mentalmente, a quem se referia.