Átimo

Essa poderia ser a história de um rapaz, um rapaz que olha pela janela do carro através da chuva e vê uma moça, uma moça que parece perdida. Não estamos todos perdidos?, ele pensaria, e, tendo coragem de descer do veículo, despindo-se bravamente da blindagem que o envolvia, pediria licença a ela, como um cavalheiro, e lhe pousaria um beijo nas costas da mão, de modo que ela não resistisse ao galanteio e sorrisse, ainda que seu instinto feminino a forçasse a parecer ofendida. Ele a convidaria para fazer qualquer coisa, talvez um café, de acordo com o clichê. Ela, rezando da mesma cartilha dos relacionamentos, de pronto sentir-se-ia ofendida, lhe diria que não. Mas ele, sendo tão doce, com mais uma ou outra palavra e um olhar irresistível, faria com que ela mudasse logo de ideia e seguiriam os dois juntos ao lugar seco mais próximo, que seria quente e alaranjado, em contraste com a chuva azul-cinzenta do lado de fora.
Os dois não trocariam beijos nesse primeiro encontro, é claro, deixariam para conhecerem-se melhor, trocariam e-mails, números de celular, expectativas de tardes ensolaradas ou não tão molhadas quanto aquela, ao menos, em que juntos passariam pelas alamedas dos parques, nos trechos de sol por entre as árvores, e encontrariam num chafariz ao fim do caminho não somente o sorriso um do outro, mas o sorriso acolhedor de um mundo inteiro, que os seguiria com os olhos. Aí sim se beijariam. Passariam os meses e os dois, palpitantes, ver-se-iam cada vez mais, precisando sempre de doses maiores um do outro do que da última vez em que se experimentaram.
Deixar-se-iam levar tanto pelos corações que, quando chegasse o dia em que a paixão se arrefecesse, não conseguiriam, a princípio, compreender o que se lhes faltava, até que começassem a sentir uma solidão crescente e os olhares, cada vez que se tocassem, doeriam, lhes acometendo de súbito uma tristeza imensa que terapeuta nenhum no mundo poderia explicar. Então um dia diriam um ao outro toda a sorte de coisas horríveis que lhes viessem à cabeça, só para escorcharem-se as feridas como se a dor causada, aumentada, diminuísse a sua própria. Perceberiam por fim, depois de muito tempo, que esse jogo de querer mostrar ao outro na pele o quanto sofriam somente lhes faria sofrer mais e mais, até o dia em que acordariam pela manhã compreendendo enfim que a ausência do outro lhes é mais do que indiferente, é um alívio. Respirariam fundo nesse dia, lembrar-se-iam com carinho de uma tarde em que fugiram da chuva, guardariam essa lembrança à chave no fundo de algum lugar que poderiam até chamar de alma os menos céticos, e levantariam da cama enfim em meio a uma manhã branca de sol, aptos a começar uma história nova.
Mas o mundo é tão infinitamente simples que está muito aquém do que queremos poder perceber. A história passa tão rápido pelos olhos do rapaz que ele nem mesmo a percebe e, quando o sinal torna-se verde, tira os olhos da garota e acelera para casa, deixando para trás, e nem sei se faz tão mal, três parágrafos inteiros de possibilidades incompletas e suposições.