Em casa, na
universidade, entre amigos, entre amores. Nas ruas, nos ônibus, nos bares, nos
restaurantes. Não por acaso. Os acontecimentos de que estamos fazendo parte me
atravessam, como atravessam todos nós. Mas acho que me atravessam de maneira
especial, seja em função do caminho que resolvi seguir, seja pela influência daqueles
que eu amo e admiro. Se até então testemunhei perplexo o desenvolvimento dos
acontecimentos (ora participando mais deles, ora participando menos), me sinto
cada vez mais mobilizado a colocar as ideias em ordem e compreender o que eu
mesmo penso a respeito. Daí este pequeno e apressado (e possivelmente
equivocado) ensaio, (devo confessar) cheio de obviedades.
Desenvolverei
o raciocínio da seguinte forma (e cheio de academicismos – tudo o que me ajuda
a organizar o pensamento é válido agora): em primeiro lugar, identifico dois
momentos diferentes, que suscitam reflexões de natureza diferente, sob (ouso
dizer) paradigmas diferentes. A partir da identificação destes dois momentos, explicito
as duas soluções que (intuo) estão se delineando entre os grupos com os quais
me identifico politica e filosoficamente (progressistas e à esquerda no
espectro político). Explico por que não os considero necessariamente excludentes
para, enfim, propor a minha opinião sobre os fatos.
1. O tal do
paradigma
Fazendo
minhas as palavras da professora Virgínia Fonseca, gosto de me considerar um
moderno pós-moderno. Não por acaso, discuti essa mesma ideia de paradigma com a
professora-colega-inspiradora Márcia Veiga, orientanda da Virgínia, ontem mesmo
– o que vou dizer aqui se deve um pouco a essa conversa.
Ainda que
meus estudos acadêmicos (pretensiosos e) incipientes e mesmo a minha forma de
pensar se alinhem a uma perspectiva de pensamento racionalista, neokantiana e
até (admito) positivista de vez em quando, não posso negar a influência da
galera dos “pós” na minha formação (pós-moderna, pós-estruturalista, pós-construtivista,
pós-contemporânea(?)). Daí, diante de fenômenos que não consigo explicar a
partir das ideias com as quais me alinho (mas que servem para explicar outros
fenômenos que eu estudo, ou não me alinharia a elas), desconfio que o problema
seja do paradigma sobre o qual estas ideias estão sustentadas (que eu vou
chamar toscamente de racionalista) e não dos fenômenos em si (da série: “óbvio
só que nem sempre”).
Dito isto,
identifico um primeiro problema/momento para pensar isso tudo o que está
acontecendo e que eu vou chamar (zoeiramente) de “occupismo”.
O occupismo
começou faz tempo. Não vou me ocupar em fazer um histórico, porque para isso
existe a wikipedia. Vou chamar de occupismo este fenômeno que leva jovens do
mundo todo a ocuparem ruas, praças, prédios públicos e símbolos do sistema
econômico, e neles permanecerem por dias ou meses, discutindo novas formas de sociabilidade,
compartilhando conhecimento, afetividade, arte, indignação e até esperança. Desses
movimentos, emergem pautas como a questão da mobilidade urbana, da produção racional
de alimentos e da economia solidária; em comum, uma ideia de humanização das
cidades (e do mundo) e uma ideia de afeto. Afeto no sentido mais amplo, a
partir do qual se pode desenvolver toda uma teoria, passando por Spinoza, Nietzsche,
Freud, Bauman, e por aí vai. É precisamente essa ideia de afeto, contraposta à
racionalidade (e que doravante chamarei de “o velho paradigma”), que me instiga a pensar isso que eu chamaria de novo paradigma.
Cada vez
mais estou convencido de que o occupismo, e seus movimentos derivados, são
indicadores que apontam para a constituição desse “novo paradigma”, em
contraposição ao velho. Essa contraposição cabe ser desenvolvida, debatida,
pesquisada, mas em outro momento. De qualquer forma, parece que este novo
paradigma pressupõe o desenvolvimento de valores e competências específicos e
demanda reflexão profunda, sobretudo no campo da filosofia (lugar de pensar “os
primeiros princípios e os últimos fins”, já dizia um professor monarquista que
eu tive). Então, não é de uma hora pra outra que isso vai acontecer. Importante
dizer que os dois paradigmas não se excluem; antes, se contrapõem: um explica
determinados fenômenos, o outro explica outros.
Pois bem.
Os indícios desse occupismo começaram a se fazer sentir aqui no Brasil, e em
Porto Alegre em especial, já faz um tempo. Dois momentos emblemáticos: o caso
envolvendo o Massa Crítica em 2011, que fez a juventude ir pra rua e deitar no
asfalto da Lima e Silva e da Borges; os “Ocupa”, em Porto Alegre e outras
cidades do Brasil; a Defesa Pública da Alegria. Em comum, esse sentimento, essa
vontade de humanizar o espaço urbano, de se tocar, de conversar, de transformar
o mundo juntos; e também a total incompreensão por parte das instituições
públicas tradicionais, isto é, Estado e mídia, que só enxergaram nesses
movimentos “vândalos”, “mimados”, “desocupados”. Com maior ou menor
repercussão, esses incidentes foram mais ou menos esquecidos, deixados para lá.
Mas reafirmo que já eram indícios de alguma coisa que estava para acontecer, e
que tinha potencial para desenvolver as tais das novas sociabilidades.
Aí, em
2013, a juventude (especialmente em Porto Alegre) volta a se mobilizar,
tensionada pela imposição de um projeto de mobilidade urbana radicalmente
diferente do que anseia esse pessoal (Copa, trânsito, transporte, árvores). Sem
força política para eleger outro projeto nas eleições do ano anterior (até porque
este “novo paradigma” passa longe da organização política tradicional), essa
galera foi fazer o que sabe fazer de melhor: baderna, no melhor sentido do
termo. Só que os antecedentes que eu mencionei antes fortaleceram essa
mobilização. Jovens que ficaram sabendo e puderam discutir o que estava
acontecendo nas ~redes~, e que nunca tinham saído para a rua (porque nunca
frequentaram reuniões de movimentos sociais, partidos ou coletivos de política
estudantil), resolveram sair.
Parte disso
também foi uma indignação generalizada com o cinismo instituído e a soberba do
Estado e dos meios de comunicação massivos. Os agentes políticos do Estado
pensam que têm garantida a legitimidade pelo voto (uma questão mais de
marketing político e de acordos entre elites políticas do que de ideologia), e
que por isso não precisam ser sensíveis a pressões e mobilizações populares de
minorias políticas, ainda que estas minorias demandem tanta proteção estatal
quanto as maiorias (ver caso Feliciano). Já os meios massivos estão em crise e
sabem que não detêm mais o monopólio dos discursos (monopólio ideológico), se
agarrando com unhas e dentes à dimensão econômica do negócio para não naufragar.
Sob esta lógica, quanto mais “clientes satisfeitos” melhor, então não faz
sentido correr o risco de perder clientes para agradar ou legitimar minorias
que não são o perfil consumidor das grandes empresas de comunicação.
Pois bem,
por uma complexidade de motivos que ousei tentar sistematizar, a briga pela
redução das passagens “colou”. Essa briga tem raízes no occupismo, mas não
deixou de ser constituída também por grupos que operam sob uma lógica política/ideológica
que nada tem de nova, e que agregam a este movimento uma competência
organizativa e mobilizadora que lhes é própria, sem, no entanto, deglutir o
movimento em suas próprias ideologias, formadas sob um paradigma diferente. Em outras palavras, estes grupos (movimentos sociais e juventude de partidos de esquerda) somaram ao occupismo, sem deslegitimá-lo
e sem alterar sua base.
Seguindo a
lógica destes movimentos, tornou-se estrategicamente interessante para este
grupo como um todo canalizar a energia occupista para uma pauta quase
consensual (tensionando os meios massivos em termos de opinião pública – os “consumidores”
começaram a ficar do lado dos “vândalos”) e absolutamente concreta (tensionando
o Estado em matéria de política pública) que é a redução do valor das passagens
de ônibus. Se num primeiro momento a mídia chamou todo mundo de vândalo e o
Estado desceu o porrete, com a reação negativa dos “clientes”, o sentido da
ação dos dois polos foi mudando. E a briga foi bem sucedida para os movimentos
de esquerda em Porto Alegre. Aqui, ainda com a imagem queimada pela violência
empregada contra a Defesa Pública da Alegria, a Brigada Militar ficou “na dela”.
Os “verdadeiros vândalos”, segundo o discurso dos meios massivos, são indivíduos que, assim como os militantes dos partidos de esquerda, trouxeram a
própria estratégia e modus operandi para dentro do movimento, mas passaram a ser internamente (e estrategicamente) censurados por insistir na instrumentalização da violência. No fim, tudo acabou mais ou menos
bem, e isso serviu de inspiração para outras cidades.
2 Caos
Pois bem, o
movimento pegou. “Vem, vem, vem pra rua, vem” dizia a galera em várias partes
do país. Em um primeiro momento, os meios massivos tiveram, em escala nacional,
a mesma reação de perplexidade, confusão, incompreensão que caracterizou a
cobertura dos protestos em Porto Alegre. O Estado, idem: bateu em todo mundo, e
bateu com mais força. Em São Paulo, a violência tomou contornos de absurdo. Não
por acaso, o estado é governado por um partido conservador, absolutamente
incapaz de dialogar com movimentos sociais de qualquer tipo, e pautado por
veículos massivos igualmente conservadores; em vez de arrefecer depois dos
primeiros incidentes, a polícia ficou mais truculenta, o que só
botou mais lenha na fogueira.
Mais galeras
saíram para a rua. Vandalismo e massacre. Até em Porto Alegre, onde tudo estava mais ou
menos bem, o pau comeu de novo ao mesmo tempo em que chegavam as notícias do
centro do país. A violência foi tão absurda, tão desproporcional, e a
intransigência do Estado tão incompreensível, que até a comunicação massiva
mudou de lado (estrategicamente). “Essas pessoas não tem causa nenhuma, e, ao
mesmo tempo, todas as causas”, era o que se repetia. E o erro estratégico do
Estado teve seu preço: fortaleceu os grupos que lhe são hostis. Com o convite
em mãos, toda a sorte de grupos ideológicos saiu às ruas com sangue nos dentes
(inclusive aqueles cuja ideologia é negar a ideologia). Caos. Um mundo novo de
possibilidades para grupos oportunistas.
Resultado:
eu, ontem, na manifestação, quase apanhando dos integralistas, o clima de
golpismo, a intensificação dos saques/vandalismos e, consequentemente, da
violência estatal.
Agora,
repare bem: o pulo do gato, a massificação da pauta e o caos decorrente, se
deve a estratégias e ações concebidas sob lógicas do velho paradigma, desde a “eleição”
da pauta das passagens para representar todas as outras até os embates
(des)ideologizantes. Isto nada tem a ver mais com o que eu chamei de occupismo.
Em determinado momento, desapareceram os traços que ligavam este movimento aos
movimentos iniciais.
“Mas e o
Facebook?”, alguém poderia perguntar. Repare que, quando eu caracterizei
cachorreiramente o occupismo, não falei do Facebook, uma organização
hierárquica, capitalista, que nada tem a ver com o novo paradigma mencionado, e
cujo único mérito – assim como outras ferramentas ligadas às tecnologias de
informação e comunicação (TICs) – foi o de facilitar a dimensão operacional desses
movimentos, ampliando possibilidades de diálogos e trocas. Isso não é pouca
coisa, mas tudo depende dos fins. Então, assim como possibilitou o occupismo,
essas TICs podem possibilitar/estar possibilitando outros fenômenos, alguns bem
nefastos.
O movimento
inicial foi transfigurado, não pela entrada dos “reaças” no jogo, mas pela inversão
de lógicas, que jogou estas manifestações de volta no campo do velho paradigma.
Pois bem. Se a lógica é a do velho paradigma, é através dele que vamos pensar o
problema (a não ser que ele se demonstre incapaz, mas vamos por partes).
3. E agora,
choramos?
A esquerda
perdeu o controle? Parece que a esquerda nunca teve o controle, pelo menos não
se considerarmos os movimentos occupistas. A esquerda se deu melhor com o
occupismo porque sempre foi mais aberta, pelo menos mais que a direita, ao
progressismo, à transformação social, à aceitação do outro, à igualdade entre
seres humanos enquanto seres humanos, com todas as diferenças implicadas aí. Os
movimentos sociais, sempre à esquerda, se pautam mais pelos afetos do que pelo
calculismo do capital. Ainda assim, as lógicas do occupismo não coincidem
completamente com as lógicas da esquerda. Daí a análise do Zizek, que há pouco
tempo esteve em Porto Alegre e desqualificou o occupismo pela sua ausência de
líderes.
A esquerda
cumpriu seu papel nessa história tensionando os valores e instituições hegemônicos.
A discussão foi agendada e a mobilização tomou as ruas e os meios massivos (através
do espetáculo), transfigurando-se em um segundo problema (ou momento), desta
vez firmemente calcado em lógicas e valores do velho paradigma. Cabe aos
sujeitos simpáticos à esquerda, que até aqui tomaram parte dos acontecimentos
intuitivamente, a decisão de como se reposicionar em relação a este segundo
momento.
Até agora,
me parecem estar se delineando duas correntes. A primeira propõe o rompimento
imediato com “o que quer que seja que está acontecendo”, sintetizado pelo “não
sairemos mais às ruas”. Uma segunda propõe justamente o contrário, que não
podemos deixar as ruas, sob pena de escusar-se do debate que nós mesmos
provocamos.
O que eu
acho: é preciso, sim, romper imediatamente com “o que quer que seja”. E é
preciso também sair às ruas. Mas, antes, cabe reunião, troca de razões,
estabelecimento de consensos, demandas e estratégias de ação (e de discurso);
trata-se de fortalecer o grupo antes de retornarmos às ruas. Cabe reforçar
identidades, gerar representações. Negociar internamente. Precisamos sentar para
conversar, mesmo que isso signifique um retorno breve (e não absoluto) ao velho
paradigma. Isto porque o problema que se coloca diante de nós está dentro do
paradigma da racionalidade, e requer imediata (mas não desesperada) ação. Precisamos
abrir o coração, trocar vivências, saberes, mas também ser firmes. Ainda que
sejamos um número pequeno, precisamos ser coesos. Vamos recomeçar, só que mais
fortes, porque gente como eu, cuja ação política sempre foi mais discursiva do
que pragmática, já mostrou que está disposta a sair do Facebook. Só que agora
quero sair pelo motivo certo.
4. E o novo
paradigma?
Reafirmo
que este novo paradigma de que falei pressupõe o desenvolvimento de valores e
competências específicos, que eu não sei quais são. Mas quero pensar sobre
isso. O que demanda tempo, reflexão; não se faz filosofia do dia para a noite. Tem
muita gente bacana já escrevendo sobre isso e tem os clássicos. Quero ler o
máximo que eu puder. Podemos criar espaços para fazer isso juntos.
Esse novo
paradigma dá sentido a novos fenômenos, impossíveis de serem compreendidos pelo
anterior, mas já não acho que há ruptura, e, sim, convivência/sobreposição
entre as formas de pensar o mundo. A revolução pode ser mais uma questão de
transformação do que de ruptura.
Mas isso não
exclui a mobilização diante do problema político que se configura agora. Pelo
contrário: se nos abstermos, corremos o risco de perder a liberdade tão
necessária para discutir essas questões.
Um comentário:
só vi agora que 2013 ganhou uma postagem. fica aqui meu bullying eterno pra tu nunca parar de escrever.
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