I 2

Há qualquer coisa de ingênuo na manhã que não me agrada. O otimismo das pessoas, deve ser, saber que há ainda umas boas dezoito horas.

Não manjo dessa coisa de alteridade.

Sento. A uns bons cinco metros, uma criança bastante infeliz arremessa uma bola para uma mãe austera. Olhos no relógio. O blazer não combina com a amarelidade do parque, mas não posso tirá-lo, mesmo sob o protesto de cada poro – os poros não compreendem o sistema político, há que haver decisões impopulares para manter a respeitabilidade do governo, a governabilidade do respeito das outras pessoas. A austeridade da mãe já me encara com certo desprezo, enquanto cofio a barba já passada da hora de aparar, o suor vertendo, o cheiro de sordidez se desprendendo da pele, e ela atrasada, e eu sentindo a dor da cárie, o gosto de sujeira. Passa um isopor sujo, a última nota da carteira transfigurada em refrigerante de cola meio quente, que desce mal. Azia. O meio-dia febril não acaba nunca, mas nada é tão ruim que não acabe: mais uma hora, hora e meia, ela chega. Combinamos. Tento em vão ligar para o número apagado na minha mão, a voz metálica me informa gentilmente que inadimplência significa ausência de comunicação (ela não chega nada!). Experimento colocar uns noves e uns zeros na frente do número e salvar na agenda, ligo, mas o sinal é que o aparelho está desligado. Medito sobre chances. Inerte, vejo a mãe passar a mão sobre a testa da criança, obscenamente gorda. Observo, não sem certa repugnância, a mãe enxugar com a palma o suor do filho, soprar-lhe o cenho, e agarrá-lo pelo pulso. Suor, e mais suor. A mão quase desliza quando a criança obesa não se mexe, mas em seguida é como se as engrenagens esquentassem, ou como se a fome o rendesse, e o menino acaba se deixando arrastar pela a austeridade materna. Credo, penso. Silêncio de um ou dois cachorros no que parecem horas, mas as horas têm a inconveniente mania de não passarem de um minuto e meio. Ela surge do outro lado do parque.

Levanto.

Uns ois, uns despachos simples. Kafka das relações interpessoais. Seguimos andando. Uma palavra sobre a noite anterior, uns silêncios constrangidos, passou a noite onde?, resmungos, certo grau de desprezo, de conivência, de desprezo ainda uma vez. Percebo que ela conta os passos. Eu mesmo não me sinto à vontade.

Chegamos enfim a um banco e, num acordo tácito, sentamo-nos, olhando para a frente. Uns carros passavam, na lentidão do feriado. Senti uma grande gota de suor descer a linha do pescoço, sorvida em seguida pela gola da camiseta. Meu estômago revira-se de nojo, ela percebe, e eu percebo que de alguma forma ela pensa que o nojo que eu sinto é dela. Não tenho sequer a boa iniciativa de lhe dizer que não se preocupe. Era minha melhor amiga, e eu gostava dela, mas seu mal-estar me comprazia de um modo um tanto sádico, um tanto egoísta, pior, autoindulgente: não tenho do que sentir vergonha, estamos no mesmo barco, condenados os dois à humilhação de reconhecer a própria torpeza, e ainda esmagados pela insignificância de ambos. Para os que se reconhecem condenados, há que haver um exagero, para que o sofrimento da culpa valha a expiação.

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