Impasse

Eu não queria sofrer, ela disse, enquanto alguém, um anjo, diriam, mas muito mais provavelmente uma manifestação de esquizofrenia da fome, sussurrava em seu ouvido: quer sim, e como quer. Lá fora, uma chuva que não havia; na bagunça do quarto, uma caixa de som, músicas tristes em mono, músicas de quarenta, cinquenta anos, talvez. A lâmpada do teto queimada, um abajur barato denunciando uma teia de aranha muito espessa. Qualquer coisa de oceano em fotos antigas, manchadas sobre a mesa entre copos, talheres, lenços, livros e outras humanidades muitas, assimetrias de uma consciência cansada das organizações de outrora. A televisão pequena emite um sinal falho, mudo, um filme preto e branco desistido de si mesmo. À plateia desassistida, restava meia dúzia de cigarros, o gosto metálico dos cigarros, que ela queria, mas não desejava. Talvez fosse melhor se deitar, não dormir, que esse muito ela sequer esperançava. Talvez fosse melhor voltar, mas voltar de onde?, para onde?, porque, no não lugar em que se encontrava, sabia que era impossível haver chegado de qualquer forma.

Um comentário:

Leti. disse...

ela não queria sofrer, mas menos que isso era superficial - era pelúcia, e ela era alérgica ao que não ardia.