Havia quanto tempo eu dissera que já não podia mais? Era exatamente assim que eu me sentia na adolescência, quando minha mãe cozinhava o jantar. Ela chegava do trabalho sempre tarde e eu me recusava a comer qualquer coisa que não fosse a comida dela, numa auto-disciplina que não mais existe (acho que se perdeu enquanto eu cursava a universidade). Eu tinha muita fome, sofria com a fome, minhas entranhas se reviravam e todo o meu corpo tremia com aquele desespero semelhante ao de quem se afoga. Então minha mãe chegava, e chegavam ao meu quarto os primeiros ruídos de cebolas fritando e também os primeiros cheiros da refeição sendo preparada, iguais aos primeiros cheiros de refeição que eu percebia do berço, quando nem tinha memória ainda para cheiros, e antes ainda disso, consideradas as memórias genéticas de um óvulo que já existia em minha mãe quando ela ainda era somente a filha da minha avó, cujo cozinhar possuía os mesmos primeiros cheiros. Era um alívio, não era um alívio, era um duro soco em meu estômago, era um agravamento do desespero da fome, como uma febre que piora muito antes de melhorar. Dados uns dois quartos de hora, a cozinha silenciava. Minha mãe me chamava pelo nome, do corredor. Ouvia o resto da família pegando os pratos, barulhos de vidro e metal, pequenas conversas. E então eu me acalmava: era o verdadeiro alívio. Eu sabia que a comida estava posta, a fome tornava-se fácil de suportar, uma companheira desimportante. Então eu não ia jantar, ficava no meu quarto, porque podia enfim me concentrar em algo maior. A fome continuava lá, mas era porque eu queria que ela estivesse lá. Eu assumia o controle e a tortura não mais tinha efeitos sobre mim. Minha mãe enlouquecia e vinha me buscar a tapas e só assim eu comia, não temia mais a fome, não temia mais ser esquecido pela minha mãe. Era exatamente o que acontecia agora, com Fernanda.
Havia muito tempo eu disse que não podia mais. Antes de concluir que o casamento chegara ao fim, tudo era suplício. Depois que falamos sobre isso e aceitamos que nada mais existia num assombroso acordo racional, porque éramos assombrosamente racionais aos vinte e cinco anos, tudo ficou fácil. Tudo era simples e viver não pesava mais sobre nossos ombros. Tanto nos entendemos melhor que eu não saí de casa, ela não saiu de casa, ficamos os dois amigavelmente juntos, dependíamos já um do outro desde que éramos crianças, mesmo tendo nos conhecido somente aos dezoito anos. Não consigo entender hoje em dia o que foi que nos levou ao casamento, embora me lembre nitidamente que à época tudo fez sentido. Éramos dois universitários, eu era de áries, ela era de leão, ela tinha um gato chamado Pétya, eu queria um cachorro pra chamar de Ródia, fomos morar juntos. Minha mãe me amaldiçoou, antes de morrer agonizando num câncer de pulmão. Não derramei uma só lágrima, o que me fez descobrir que a verdadeira tragédia é seca, a verdadeira dor não tem nada de úmida, é seca e vazia e solitária. Ao lado de Fernanda, a verdadeira dor fora solitária. Mas a solidão ao lado de Fernanda não representava mais nenhuma dor então e era isso que me intrigava, mas me intrigava bem pouco, que minha alma andava tão boa que não havia espaço para a escuridão de uma dúvida no meu rosto cansado de satisfação. Não foi estardalhaço quando Fernanda passou a não dormir mais em casa uma noite ou outra. Ela tinha seus amantes, eu tinha os meus. Completávamos, dividíamos o sono, e aquilo não era senão amor, despido de paixão, essa motriz sensual que termina, que só pode terminar em destruição e é por isso que agora eu sorria. Paixão, só fora de casa. Dentro de casa, restava apenas o aroma floral de Fernanda, ainda lânguido, ainda atraente, mas terno, de um modo que não houvera sido antes: antes era quente, muito quente, queimava. Agora era um conforto viver ao lado de Fernanda.
Só tinha um medo, um medo inconsciente, que eu demorei a perceber que existia, embora de certa forma o tivesse pressentido quando aconteceu das primeiras vezes. O medo era não ter mais Fernanda, perder Fernanda para um ideal burro de felicidade que ela pudesse ainda conservar que a fizesse me deixar por alguém que não lhe daria mais que um membro disfarçado de carinho. Decidi que eu deveria morrer ao lado de Fernanda, mas uma mão cutucou meu ombro e escarneceu de mim, “você sabe muito melhor do que ninguém que o peso das suas resoluções é o de um pêlo de rato”; a mão era a minha covardia.
Estava decidido, queria um final trágico para a minha história com Fernanda. Um final trágico e seco, como a morte da minha mãe, a respeito do qual não se derramaria uma lágrima. Eu queria que, após as conseqüências de minha tragédia, o tempo respeitasse e soubesse guardar a minha loucura. Só me faltava mesmo a coragem. Morávamos sobre o mesmo teto e eu a amava enquanto as coisas fossem assim. Se ela me deixasse, me apaixonaria. Eu somente esperava por isso, esperava pela oportunidade de me apaixonar de novo por Fernanda, para que a paixão pudesse nos destruir, para que eu pudesse nos destruir. Delirava nesses pensamentos nas noites em que ela não voltava pra cara, quando eu sabia que ela passava a noite com algum homem novo. Eu perdia aos poucos a capacidade de sair, de me relacionar com outra pessoa, pelo menos na intimidade do sexo. Nas noites em que ela dormia em casa, eu dormia tranqüilo e suspirava durante o sono.
Num dia aconteceu, de repente, como essas coisas simplesmente acontecem – e por isso muitas vezes levamos um tempo enorme até compreendê-las e também as suas conseqüências. Fernanda não voltou pra casa, mas isso era normal. Dei-me conta de que ela levara quase todos os seus pertences somente na manhã seguinte. Fiquei desolado. Não houve telefonema que me pusesse para fora do meu quarto. Inquieto na cama, eu arquitetava, delirava, partia do fogo da paixão que agora violentamente me consumia, levitava para um desprendimento de morte que me desapegava à matéria e tombava, por fim, como um cadáver, no lamaçal do medo, da vergonha, da decepção, do sangue, que ainda não era meu, nem de Fernanda, nem de ninguém, era de um animal, um animal que morava em mim e que cuspia e guinchava e estrebuchava em desespero, até que eu levantasse da cama suado e preparasse um café, para depois retornar à vigília de conspurcar a memória da maldita até altas horas da madrugada, repetindo o ciclo de miséria. Precisava de um plano. Somente. Um plano de fuga, para escapar do círculo vermelho, para deixar-me em paz com Fernanda. Mas essa luz eu não alcançava. Decidi, finalmente, às luzes de uma aurora que, essa sim, teimava em perturbar a plasticidade do céu daquela hora (perfeito para mim, em sua coloração mais escura - que é exatamente a cor que tinge o céu na proximidade da aurora), decidi com um fervor de achado científico que deixaria de lado qualquer plano, que deixaria agir o destino, que era assim que eu sabia trabalhar melhor, sem contemplação, que a contemplação para mim era só sofrimento.
Fui visitá-la em seu lugar de trabalho sem pré-compreensões, sem rotas preestabelecidas. Fernanda pediu à secretária que me mandasse aguardar, na certa com a esperança de que eu desistisse de atordoá-la com algum drama dos que me acometiam com freqüência e que ela não só conhecia muito bem como houvera aprendido a subestimar. Aquilo eu não aceitava. Fui o mais persuasivo possível, conhecia bem aquela secretária indecorosa, muitas vezes ela sorrira para mim, muitas vezes tentara lançar sobre mim o que para ela era fácil de lançar sobre todos os outros homens. Eu ria dela em pensamento, achava-a ingênua; ela não sabia, nem tinha como saber que para mim era só Fernanda, jamais tive desejo, carnal ou espiritual, por mulher nenhuma que não fosse Fernanda, não tive casos com mulheres além dela. Permiti a mim mesmo esse pequeno embuste; fingi, muito calculadamente, possuir aquelas artes de sedução que nunca me tinham sido naturais, sorri, retribuí o olhar da secretária, fiz com que ela pensasse que conduzia a situação, sutilmente. Deixei um gancho numa palavra, dei a ela esperanças sem precisar falar muito, ela me deixou fazer uma surpresa para Fernanda. Entrei na sala.
Minha paixão mais fulminante estava ao telefone. Ela ria, inconsciente do meu desespero sofrido. Como pareciam irregulares aqueles dentes agora, que feios e amarelos, escancarados na boca cruel de advogada de Fernanda. Ela continuava a rir, afetada. Os óculos eram de um fetichismo vulgar, acetato insensível às linhas do rosto. Ela ria tanto que demorou a perceber que eu entrara. Como doeu a vergonha da estranheza de Fernanda, seu riso horroroso transfigurou-se: era uma carranca indignada, "O que você pensa que faz aqui, não deixei entrar, chamo os seguranças". Olhei para a luminária, pude ver o fogo consumindo a nós dois, a tragédia final, o circo, a morte seca que eu imaginara. Fernanda por fim notara meu desespero, meu olhar tresloucado que revelava a que eu vinha, que entregava que eu era capaz de qualquer coisa. Sua irritação tornou-se terror numa mudança que foi muito sutil no olhar, ela fora paralisada. Era tão patética quanto eu era naquele instante, temendo, sentindo o que sucedia numa intuição de bicho, cadela que era. Num segundo compreendeu que de nada adiantaram todos aqueles anos de dedicação à profissão, à sua própria formação, assim como tiveram sido inúteis o passar maquiagem todos os dias em frente ao espelho. Soube sem equívoco que a vida encontrava-se na iminência do fim. Foi quando escorreu uma lágrima do olho vidrado.
Por um momento hesitei, meu ânimo doentio arrefeceu-se como um balão que estoura e de repente perde o sentido de ser. Estupidificado, não percebia o significado daquela gota, escorrendo pelo rosto empoado de Fernanda, marcando como uma cicatriz; só que, ao contrário das cicatrizes, que são marcas impuras de uma violação na perfeição pacífica da pele, aquela lágrima lavava, purificava, mostrava a verdadeira pele por baixo da máscara, humanizava. Era uma cicatriz ao contrário. Descobri naquele instante que eu não amava Fernanda, que eu não era apaixonado por Fernanda, eu era um ser humano e assim ela também o era. Saí do escritório trôpego, a secretária não entendeu nada. Não olhei para trás, guardaria para sempre a lágrima de Fernanda como a imagem final, o rompimento. Parei na calçada em frente ao prédio sem saber o que fazer com a minha vida, com aquela liberdade que esmagava minha existência: eu era livre de Fernanda. Eu era livre. Podia me jogar à frente do primeiro ônibus que passasse na avenida, mas não o faria. Eu era um covarde, suscetível às emoções humanas, como são todos os meus companheiros de raça. Voltei para casa, tratei de vender logo aquele apartamento. Mudei de cidade, de emprego, quase mudei de profissão - contudo, àquela altura da vida, resolvi que não há que se fazer radicalismos. Eu tinha os pés na terra afinal, o que era um alívio. Ainda quando passo por uma ponte, penso em me atirar dela, mas é com leveza que formo esse pensamento. Passo a rir de mim mesmo. Sou mesmo patético.
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