Chove ouro baço, mas não no lá-fora...É em mim...Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e tôda ela escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...
(F. P.)
Meu holiday começou tão bem! A cabeça explodia. Sobre a mesa, uma bandeja de frutas restava. Sozinha. Me trouxeram uma caneca de leite com achocolatado, thanks god!, honey, you’re so Nice. Era o que eu precisava para vomitar, na verdade, mas agora eu me sinto tão bem. Quase esqueço que não é verão e o dia lá fora tá um asshole. Saca, quando eu lavantar, gosh, eu juro que um dia eu levanto, quando eu levantar eu vou te dar é um beijo, porque tu merece, honey, sim. Agora eu preciso dormir. Sabe, eu durmo e sonho com diversas coisas, você inclusive. Quase não penso muito enquanto sonho, mas sabe como é ressaca moral, é assim que nem um passarinho, melhor, que nem uma gaivota – gaivotas comem lixo, não é mesmo?
Eu poderia me sentir mal pelo que ele sentiu ontem, mas quem disse que eu me importo? Gosto de pensar que eu não estava lá mesmo. Eu não enxergo, onde estão meus óculos, hon?, ah, sim agora eu me lembro bem. Sabe, é engraçado. Prefiro não pensar nisso agora, tenho tanto que fazer e já passa das três, não é mesmo? É impressão minha ou eu cancelei um compromisso à uma hora?
Como chove, não é mesmo? Lembro de um tempo em que não chovia. Eu ia à escola todos os dias, acho mesmo que nos feriados eu ia prescola, lembra? A gente tinha uma professora que era bem estranha, não, na verdade era ela normal demais e isso é que era estranho, sabe, honey, eu não gosto de gente normal demais. Se eu quisesse gente normal em volta de mim comprava um gato pra se esfregar nos meus pés e um televisor muito bom, desses novos, e assinava uma TV a cabo, sabe? Não, gente normal tem demais no mundo, a vida é uma só, quero pessoas interessantes perto de mim. Então, como eu ia dizendo, a gente tinha uma professora, lembra? Era só uma naquele tempo, nem esperavam da gente essas historinhas de especialização, isso não existia, gosh, eu juro por deus que não existia. Enfim, tinha uma professora, sim, mas não é dela que eu quero falar, quero falar da mulher que a substituiu, lembra? Foi uma vez só. Sim, eu me lembro. Ela mandou fazer um texto assim: o título era “eu sou gaúcho”. Que coisa idiota, não é mesmo?, agora eu posso ver. Sabe, ela assustou mesmo a gente, mandou acabar o texto antes do recreio, que quem não acabasse não comia! Imagina! Não queria que a gente comesse, honey! Para mim agora tanto faz, mas eu ainda penso no que fazia aquela velha pensar daquele jeito, por que deixar as crianças sem comer, né? Sabe, é fácil assustar uma criança.
Sabe por que a gente gosta da nossa mãe, dear?, é porque ela cozinha, cara, é por isso: ela nos alimenta, nós amamos a mãe porque ela é a primeira a nos alimentar, é uma coisa de memória instintiva isso, existe isso de memória instintiva?, você que faz psico que me diga. Ou pedagogia. Minha mãe era pedagoga, minha mãe é pedagoga, por que é que a gente tem essa mania de referir-se a nossos pais no passado, nossos pais estão vivos, eles tão aí do nosso lado, cara, posso te garantir. Pois bem, minha mãe é pedagoga. E eu amo a minha mãe, cara. E ela me alimentou. E aquela mulher que substitui a professora, como tudo é claro agora!, aquela mulher não tinha mãe, aquela mulher não foi alimentada, nem era pedagoga, por isso que ela queria nos privar disso, my dear, é muito lógico, não podemos nem culpá-la, só podemos lamentar por ela, chica.
Então, ela deixou metade das pessoas sem merenda, lembra? Eu fui um desses. Pior é que eu quase acabei o texto em tempo, cara, ia acabar bem na hora do recreio, mas daí teve um cara que entregou logo antes de mim, minutos antes, segundos!, eu tava quase me levantando pra entregar, honey, daí ele entregou e ela esbravejou, mulher dragão, cara, horrível que era: lembro do grito, lembro da cara vermelha do demônio, cara, sim, pra gente ela era nada senão o demônio. Ela disse assim “MAS O QUE É ISSO, VOCÊ É BURRO”, sim, ela falou em maiúsculas, cara, “MAS O QUE É ISSO, VOCÊ ESCREVEU UM TEXTO CHAMADO ‘EU SOU GAÚCHO’ QUE NEM É SOBRE VOCÊ?”. Gente, como aquela mulher era bruta, uma verdadeira embrutecida pela falta de mãe dela, cara, só pode ser – desde quando, me diga, desde quando o título do texto implica a pessoa do texto, cara?, que mulher asquerosa, mesquinha, mulher-bagre, bruxa decrépita, cara, apodrecida por dentro de fazer isso com criança! E meu texto era em terceira pessoa, cara! Como eu queria voltar lá, gosh, eu queria, ia fazer um texto em quarta pessoa e ia ver o que é que ela ia dizer. Quebrava a cara dela, cara, ou melhor, jogava um balde d’água, que nem a Bruxa do Oeste, cara, como eu tinha medo da mulher. O medo não tá com nada, cara.
Honey, você se ofende se eu te chamo de cara? É que é o meu jeito, sabe, me exalto assim, só um pouco, e já perco a elegância, dear, já perco a polidez.
Mas não tá claro agora, chica?, aquela mulher não foi alimentada. Como é verdade isso! Quanta gente mal alimentada tem por aí, não é verdade, cara – ai, olhaí o cara outra vez, tenho que parar com isso, te considero, dear, te considero bastante. Mas que eu queria dizer era isso mesmo, sabe, como tem gente que não foi alimentada.
Sabe, minha mãe, pedagoga, eu amo minha mãe, cherie, mas ela pensa que amor é dinheiro. Não tão assim, é menos trágico, ela me deu carinho, me deu atenção, mas na cabeça dela amar a família não é senão se sacrificar pra sustentá-la. Daí eu te digo, darling, tem gente que não é alimentada de comida, tem gente que não é alimentada de arte. Arte é amor, cara. O que é a estética senão criar o belo, e o que é o belo senão aquilo que a gente é capaz de amar? É assim que o feio vira belo, honey, todo mundo sabe disso desde pequeno. Minha mãe me deu atenção e conseguiu me dar arte, cara, ela conseguiu! (Prometo que paro já de dizer cara.) Ela conseguiu, ela que passou fome de arte, e agora eu sei que as pessoas precisam de comida, mas elas precisam ser alimentadas de arte também, sweetie, porque quem não o é fica que nem a minha avó, que não alimentou minha mãe com arte, que nem a mulher-bagre, fazendo aquilo com criança, porque não compreende arte, entende? Minha mãe era boa, ela não recebeu amor, honey, mas ela soube me dar; agora ela não compreende, dear, não compreende a arte que ela mesma me deu, a minha arte, a minha necessidade de arte, a necessidade de alimentar meus filhos com arte, saca?
Ah, ainda chove, honey. Chove ouro baço, lá fora e aqui dentro, e a hora é absurda, mas nos pega de jeito. Você dá licença deu ir num compromisso, meu amor, que eu já cancelei um hoje? Vou sair na chuva, mas te prometo que pego um táxi para ti. Você me ama, honey? Eu sei que sim, se não soubesse não pegava um táxi, ia a pé pra casa e não me importava comigo mesmo. Sabe que se eu me importo comigo é porque estou me preocupando de ti, né?, porque tu me ama. E eu sei disso. O resto, dear, é ressaca. Ressaca moral, ressaca de vinho ruim.
Um comentário:
minha mãe também é pedagoga, hon.
sorte, nunca fiquei sem comida.=
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