Sordidez

A sordidez é um inseto cuja picada é boa, boa demais para fazer bem. A sordidez me pegou desprevenido outro dia, na rua, à noite. Disse coisas que eu não devia para uma certa pessoa a quem eu devia minha existência, a doce Vanessa. Ela me esmagou o inseto da sordidez no meu pescoço. Enojei-me, arrependi-me, mas tarde já era. Sozinho, vaguei pela rua escura e fria, até que entrei nesse bar.

Não conhecia ninguém. Era um lugar sujo e mal iluminado. Não precisava já ter estado ali para conhecê-lo profundamente, porque igual àquele havia centenas, dezenas dos quais que eu já havia freqüentado só no bairro onde moro. Passei pelo balcão e pedi vodka, fui ao banheiro e quando voltei fui servido na mesa mais ao canto, junto a uma janela. Por ali eu via, não muito bem, alguns vultos que passavam pelo inverno que fazia lá fora. Ali dentro eu sentia calor.

Meu copo já havia sido esvaziado e enchido de novo uma boa meia dúzia de vezes quando entrou um casal e ocupou a mesa ao lado. O homem sentou-se de frente para mim, rindo e falando alto. A mulher era quieta. O mesmo homem que me servia as vodkas serviu uma taça de vinho a ela e algo que eu não pude escolher se era uísque ou conhaque para ele. Ela levantou-se de repente, sem tocar na taça. Ele a segurou pelo braço de forma rude, mas a deixou ir depois de algumas palavras em voz baixa. Uma vez sozinho, o homem encarou-me. Sorriu e disse qualquer coisa que eu não compreendi, não escuto muito bem, mesmo sóbrio. Eu sorri e concordei. Ele irritou-se. Levantou e sentou novamente ao meu lado. Perguntou se eu a queria, a mulher que o acompanhava. Eu não entendi e perguntei em que sentido. Ele riu. Quando ela voltou, levantou-se e antes que ela tomasse de volta seu lugar à mesa ao lado da minha, disse qualquer coisa ao seu ouvido que a fez pensar e decidir sentar-se ao meu lado.

Ela me pediu um gim. Chamava-me de “meu bem”. O homem nos olhou da outra mesa e sorriu, indo sentar-se ao balcão do bar em seguida. Eu sorri e expliquei que não estava entendendo bem o que se passava. Ela perguntou se eu queria sair dali. Eu quis saber o que o homem que a acompanhava acharia disso. Ela riu, mostrando os dentes amarelos, mas perfeitamente colocados. Ele nem vai perceber, foi o que ela me respondeu.

Deixei uma gorjeta ao garçom embaixo dos copos de gim pela metade e saí de braços dados com ela para a madrugada muito fria. O homem que estava com ela sequer notou que havíamos saído, estava de costas para a porta.

Eu perguntei aonde ela morava, ela não respondeu, perguntando se eu não preferia ir para a minha casa. Pedi desculpas e disse que não poderia, que meu avô dormia cedo. Ela consentiu que fôssemos de táxi para a casa dela, cujo endereço revelou, ficava "perto da Azenha", que não era tão longe afinal. Naquele momento eu hesitei, intuindo tratar'se de uma atitude tola sair dali de perto da minha casa, da vizinhança boêmia que eu conhecia muito bem, para meter-me na casa de uma estranha, que primeiro estava acompanhanda, mas em seguida bebia gim comigo, arreganhando grandes dentes amareos. Ela insistiu docemente. Não era feia, afinal. Ainda assim não pôde me convencer, eu a coloquei num táxi sozinha, argumentando gentilmente muito cansaço, e voltei a pé para a casa, não sem deixar qualquer quantia com ela (o que eu teria achado um exagero ofensivo se não tivesse tomado tantas doses de destilados). Dormi um sono inquieto, sonhei que saía pela janela flutuando, mas caía ao avistar a primeira árvore. Lá fora amanhecia e subia uma neblina que cobriu minha rua toda.

Acordei muito tarde. Fui à casa da mulher que eu amava, para me desculpar, mas ela não estava. Saiu com os pais para a igreja. Atendeu-me a irmã esbaforida, que depois eu soube que estava com um rapaz com quem se encontrava sempre que a família estava na igreja e que a abandonou quando soube que esperava um filho dele. Teria não mais que quinze anos quando desse episódio.

Tive o cuidado de parar na padaria e comprar um bolo do gosto de meu avô antes de voltar para a casa. Todas as comadres do prédio me esperavam na sala de estar (uma delas eventualmente limpava e cozinhava para nós, não pela insignificante quantia que meu avô lhe pagava, mas porque gostava do velho e era o mais próximo de uma amante que ele tinha). Chamaram-me de irresponsável, que não podia deixar o velho sozinho em casa daquela maneira. Eu mostrei o bolo e disse que fui buscar algo que comer. Nisso o velho acordava e entrava na sala todo despenteado mandando as velhas embora e me desejando uma boa noite. Recolheu-se em seguida levando o bolo que eu lhe comprara para o quarto. Fiquei sem nada para fazer até às nove horas, acabei assistindo às notícias. A âncora anunciou um homicídio que acontecera no meu bairro na madrugada anterior. Achei estranho que estava na rua e não vi movimentação nenhuma. Mostrou-se o bar do assassinato: era onde eu havia estado, exatamente! A vítima não se havia identificado, era um homem, tinha seus quarenta anos e muito dinheiro na carteira. Entrou no bar um homem de rosto coberto e atirou duas vezes na cabeça dele, deixando o bar antes que o dono do lugar assimilasse o ocorrido. Preparei uma dose de vodka barata que tinha em casa. Às nove, quando bateu o Pontes na porta do apartamento, despedi-me do meu avô e logo fui dizendo ao meu amigo que tínhamos o que fazer naquela noite, antes de ir a qualquer lugar. O Pontes me perguntou a respeito de Vanessa, eu disse que não era ela que ocupava meu pensamento naquela hora, mas, se isso o fazia contente, havíamos terminado. Ele não falou mais do assunto, perguntou aonde íamos. Respondi que tinha negócios a tratar com uma dona "perto da Azenha". "Como assim?", quis saber ele, eu expliquei tudo desde o início. Ele riu, eu "não tinha mais o que fazer". Julio Pontes era bom amigo, e já havia bastante tempo, sabia que qualquer coisa fora do normal me instigava, que eram essas coisas sem nexo com a realidade habitual que me faziam desperto e excitado, que todo o resto me aborrecia muito, as coisas quotidianas, os mesmos lugares de sempre e as pessoas a quem se vê todo o dia. Fomos a pé pela avenida até o hospital, mas eu não sabia ao certo onde ela morava. Sentamos num bar e o Pontes me perguntou o que exatamente eu queria com ela, se era pelo puro prazer da especulação que ali estávamos; eu respondi negativamente. Na verdade eu não tinha nada pensado, queria saber mais dela, ao menos, do homem que morrera vítima de dois tiros na madrugada e mesmo se ela sabia do que havia acontecido depois que saímos de lá. O Pontes me chamou de louco e sorriu, como sempre, mexendo os ombros e tomando mais um gole de cerveja. Agradava-lhe qualquer lugar em que pudesse beber longe das vistas da noiva.

Lá pelas onze e meia ele se aborreceu e me convenceu a fazer qualquer outra coisa que não fosse esperar por uma mulher que eu não conhecia num bar sujo, sem saber se ela de fato passaria por lá. Pagamos a conta e enquanto meu amigo se distraía com qualquer coisa junto ao balcão, eu, parado junto à porta, a vi do outro lado da rua. Chamei por ela. Ela parou e me viu.

Atravessei correndo, semáforo fechado para pedestres, deixando o pobre Pontes para trás, e a cumprimentei com um aperto de mão. Ela gelara minha tentativa de abraçá-la. Estava com uma aparência cansada, de vestido marrom e casaca nada elegante, bem diferente da roupa que usara na madrugada anterior; disse que estava com pressa. Perguntei se ela se recordava de mim e como ela estava, que fiquei sabendo do destino do homem que a acompanhava. Ela olhou primeiro para mim, franzindo a testa incrédula, "o que o faz pensar...". Suspendeu a frase pela metade e girou o pescoço, desta vez olhando em volta, tensão mal disfarçada com um sorriso nervoso. Disse que estava tudo bem, que o homem morto era seu irmão e que tinha dívidas de jogo. Emendou que era tarde e tinha que voltar pra casa. Quis saber onde ela morava exatamente, ela irritou-se e me largou uma despedida gelada, saindo rápido e olhando para os lados, protegendo o pescoço do frio com a gola do horroroso casaco. Nisso o Pontes já havia atravessado a rua e veio me perguntar o que havia. "Mulher louca", respondi, e já estávamos indo pra casa quando um carro invadiu a calçada e atropelou a mulher que segundos antes estivera ao meu lado. O carro deu ré e passou por cima dela estirada no chão, enquanto o Pontes me segurava, tão estarrecido quanto eu, antes de acelerar e dobrar a primeira esquina bem acima do limite de velocidade. O Pontes quis guardar a placa, eu corri para a mulher ensangüentada, enquanto as pessoas em volta davam gritinhos ou clamavam que alguém deveria chamar a polícia. Uma ambulância chegou rápido, respondendo ao chamado do Pontes, o sensato, mas já era tarde. Ela estava morta e eu sequer sabia seu nome.

Depois a polícia quis saber se estávamos com ela, o que sabíamos da mulher, entre outras coisas. Uma delegada veio conversar comigo e com o Pontes, disse que a mulher se chamava Lisandra e que era manicura num salão da zona leste até algumas semanas antes, quando parou de ir trabalhar. Contrariando os conselhos do Pontes, eu contei à delegada tudo o que se passara desde a noite anterior. Ela anotou meu endereço e saímos da delegacia às três horas. Fomos ainda a uma festa perto do prédio do Pontes, mas eu não fiquei muito tempo, fui para a casa deixando-o bem acompanhado (ou não, depende do que a noiva dele acharia da moça se a visse), e fui para a casa. Não dormi antes das seis, no entanto.

Acordei novamente muito tarde e saí para almoçar com o velho, que me esperou acordar movido pela sua consideração carinhosa habitual para comigo. Era domingo. Havia um ar saudável nas ruas que não combinava com o gosto que eu tinha na boca. Limitei-me a responder com um sim ou com um não todas as perguntas do pobre do velho. Sempre penso que ele deve se sentir muito sozinho vivendo comigo, que sou um lacônico. Decidi não falar nada sobre os acontecimentos noturnos, primeiro para não ouvir repreensões, segundo porque tinha preguiça de entrar em detalhes indispensáveis para a compreensão da história. Deixei-o na praça, depois do almoço, com uns outros idosos conhecidos e fui ao Pontes, mas esse não estava em casa. Voltei para o meu apartamento e fiquei no meu quarto, lendo qualquer coisa para a faculdade sem prestar atenção. Ouvi o velho chegar e depois me desejar boa noite do corredor. Dormi pouco depois da meia-noite, entediado. Na manhã seguinte tinha muito que fazer, não tive tempo para pensar em bobagens até as seis da tarde. Em casa, me haviam deixado um recado da delegada para comparecer à delegacia assim que pudesse. Meu avô quis saber do que se tratava, o que tinha acontecido de grave; respondi que não era nada, era só sobre um atropelamento que eu tinha presenciado outro dia e que depois lhe contaria tudo melhor. Peguei o primeiro táxi e desci em frente à delegacia, há duas quadras somente do lugar do atropelamento. A delegada me recebeu simpaticamente. Contou-me que não se via nenhuma ligação entre os dois homicídios, a mulher e o homem não eram mesmo parentes, e que, sim, o caso da mulher estava sendo tratado como o assassinato que fora. Disse que não me preocupasse, que seria chamado somente como testemunha, a fim de contar o que vira, mas que isso ia demorar mesmo um pouco para acontecer. Perguntou se eu tinha certeza de que se tratava da mesma mulher. Eu não tinha nenhuma dúvida. Queria que ela me dissesse quem era o homem. Relutante, confessou que não sabiam seu nome todo, que era conhecido pelo codinome "Tucano", que vendia peças de carros usadas e que eventualmente teria ligações com prostitutas de alto nível da capital. Fui para a casa meio que decepcionado por ter recebido tratamento tão marginal no caso. Testemunha vulgar? Não era eu o único elo de ligação entre as duas mortes?

Cheguei ao apartamento, demorei um pouco para achar a chave no fundo do bolso do casaco. Ao experimentá-la na fechadura, porém, não pude abri-la. Forcei várias vezes, sempre com medo de quebrar o mecanismo ou a própria chave, até que desisti, pondo-me a esmurrar a porta sem muita esperança de que o velho, mais surdo que eu, levantasse da cama para abrir a porta para mim. Depois de certo tempo, perdi a paciência. Sentei-me no corredor, encostado à porta. Quando uma das comadres vizinha de porta botou a cabeça para fora, esqueci por um momento a simpatia cínica que dispensava às velhas do bairro e a mandei à puta que a havia parido. Minutos depois, um carro de polícia parou em frente ao prédio. O policial entrou e perguntou-me se eu era morador do edifício. Disse que sim, que meu avô era homem doente, que a fechadura estava emperrada e que não havia quem abrisse. O policial nem chegou a tentar abrir, imobilizou-me quando me levantei e me levou para a rua. Do lado de fora do prédio, quis saber o que estava acontecendo, mas o policial me respondeu com um soco que me tirou um pouco de sangue da boca, mas nenhum dente, felizmente, e mandou que eu saísse de perto daquele prédio, ou seria diretamente enviado ao presídio. Decidi voltar mais tarde, entendendo que não haveria possibilidade de diálogo com o soldado.

Pensei em ir a algum lugar comer alguma coisa, que tinha esquecido de comer no afã de responder ao chamado da delegada. Escolhi a casa do Pontes, na cara dura. Chegando lá, uma vizinha me disse que o rapaz tinha ido à casa da noiva. "Droga!", exclamei em voz alta, esqueci-me dessa mania que os noivos têm hoje em dia de morarem um na casa do outro durante a semana. Tive muita inveja deles, moravam sozinhos, e não com a família como eu e a Vanessa. Voltei pros arredores da minha casa. Adoraria a idéia de ficar na rua até tarde no inverno em qualquer dia da semana, exceto na segunda, porque a terça era o dia que começava mais cedo na minha semana, tinha compromissos a partir das oito da manhã, e também porque nenhum bar abria na segunda. Encontrei por sorte um restaurante onde um chapista compadecido dispôs-se a me preparar um sanduíche, mesmo estando prestes a cerrar as portas.

Sempre imaginei que fazer se um dia ficasse sem abrigo por uma noite. De vez em quando passava por uma árvore, ou por um monumento e pensava que me poderia esconder ali se ficasse sem teto naquela cidade. Jamais consideraria isso seriamente, concluí, mesmo naquela situação estranha. Fazia muito frio, mais do que o normal à noite, embora desconfiasse que fosse a falta de álcool que me fizesse sentir assim.

Mal terminei o sanduíche, me escorraçaram da lanchonete como eu previ que fariam. Decidi tentar entrar em casa mais uma vez. Quando me aproximei do prédio, porém, um homem ,cujo rosto não vi bem e que deveria estar à minha espera desde mais cedo, me atacou, segurando-me pelo braço e socando meu estômago. Do nada surgiu outro, por trás de mim, que me segurou para que o primeiro me pusesse sem sentidos depois de um bocado de pancadas na cabeça.

Acordei com muita dor num chão molhado. Tremia. Tentei dizer alguma coisa, ouvir minha própria voz, mas não conseguia, não podia me convencer se por debilidade ou por falta de coragem. Estava muito escuro. Havia música, alguém escutava rádio perto de onde eu estava. Não me mexi até que veio um homem, o qual eu não reconheci, que me pegou pelo braço e me levou para uma outra sala, onde havia o rádio que eu estivera escutando e mais três pessoas: um homem que eu não conhecia, a mulher que eu mesmo vira morta e o homem cuja notícia da morte eu vira pelo jornal. Esse último riu olhando para mim, como se sorisse. Eu baixei a cabeça, atormentado. A mulher foi a primeira a se aproximar e levantou o meu queixo, me encarando. De perto pude compreender que não era a morta que eu vira, mas, sim, a delegada, a quem eu encontrara horas antes. Não tinha até então, notado a semelhança entre as duas. Não disseram nada por alguns instantes. A delegada balançou a cabeça e estalou a língua. O desconhecido fez um aceno com a mão e o homem que me buscara no quarto úmido me deu um empurrão na direção de uma porta que dava para a rua. Vi que se tratava de uma casa em meio a um descampado sem nenhuma iluminação em redor e umas manchas escuras ao longe que podiam ser matagais. O homem me deu um chute nas costas e eu entendi que devia sair dali o mais rápido que pudesse. Mesmo sem nenhuma força pude correr, corri como nunca em minha vida, desesperado, sem saber sequer se corria em linha reta. Corri por um tempo que pareceu bem se tratar de horas, até ouvir uma explosão e em seguida uma outra, e sentir um calor molhado e viscoso na batata da perna e outro nas costas, caindo de borco na grama úmida, sentindo essa umidade misturar-se ao suor do meu corpo muito desagradavelmente. A terra molhada invadiu meu nariz, meus olhos e a minha boca. Demorei ainda um momento ou dois para imaginar e compreender que se tratavam de tiros. Nunca havia sido baleado antes. Pensei em Vanessa, pura, de camisola, a dormir numa cama limpa e quente com raiva de mim, e senti pena de mim mesmo. E nojo. E um pouco de remorso também por todas as sórdidas coisas que havia dito ou feito em minha vida.

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