Um Cobertor

Encontrava-se numa ânsia de acabar com o mundo. Nem sabia por que se sentia assim, só tinha vontade de que o tempo passasse bem depressa, mesmo que não houvesse perspectiva de nada dali a duas horas, nem dali a três. Era acabar o dia, dormir, começar outro. Não tinha idéia do que lhe produzia aquela ansiedade, o pior já acontecera, passava das seis da tarde e o telefone não tocara. Não tocaria mais. O silêncio do telefone era uma sentença capital, transitada em julgado, sem possibilidade de recurso. Estava atônita, sim, e custaria ainda a se resignar, conhecia-se bem.

Deixou o olhar cair sobre o aparelho com raiva. Raiva daquele aparelho vermelho, raiva do esmalte vermelho, do casaco vermelho que ela usara tão em vão, tão ridículo. Sentia raiva e se sentia ridícula, ingênua, passada para trás.

Levantou-se da poltrona, sentiu frio. Apanhou um livro da mesa de centro e sentou-se novamente. Passou o objeto entre os dedos, duzentas páginas que não significavam nada, vinte anos que não significavam nada. Não poderia ler, não estava para leituras. Mesmo assim, insistiu. Abriu o livro na primeira página, irritou-se com aquele ritual tão convencional, fechou o livro e o abriu de novo bem na metade, passando os olhos velozes por meia dúzia de palavras que leu sem compreender. Fechou novamente o volume com violência – “ora, tem até graça”.

Decidiu que não podia ficar sentada. Levantou-se e em seguida esticou o corpo para erguer um cobertor, atirado ao tapete num acesso de impaciência ainda uma meia hora antes. Enrolou-se na coberta dos pés à cabeça, prendeu a respiração, desejou arduamente, como se fosse possível, desaparecer naquele tecido grosso tão macio. Como o cobertor a compreendia bem, era só dele que ela precisava naquele instante, de sua proteção, de seu isolamento.

Jogou-se no tapete toda enrolada, como uma lagarta num casulo, e não conteve um choro rasgado. Chorava e sentia-se ainda mais patética, irritante, fútil, onde já se viu chorar por tamanha bobagem, o que era ele afinal, senão um cara como outros tantos milhões de caras naquela cidade cuja existência não lhe era sequer conhecida até dois dias antes. A existência dele ainda não lhe dizia respeito, na verdade. Era uma idiota, e quanto mais se convencia de que era uma idiota, porque aquela cena dramática para platéia nenhuma não passava de idiotice, mais se sentia incapaz de conter as lágrimas; sofria a si mesma, para depois se repreender e sofrer mais com isso, um sistema perpétuo perfeito.

Perfeito era ele.

Conteve finalmente as lágrimas e sentiu-se confusa. O que teria dito de errado? Revisou as palavras uma a uma, porque o registro daquele encontro era nítido como um filme em frente a seus olhos. Era em vão, era em vão, repetia balbuciando, sem muita consciência disto, porque a mente ocupava-se de reviver o momento, o encontro um dia antes. Viram-se pela primeira vez num terraço. Ela na verdade já o tinha visto duas vezes: a primeira fora na festa, horas antes – horas, foram horas entre a festa e o encontro, quem poderia dizer! Ele nem reparara nela naquela festa, ou era um mestre da indiferença fingida. Na segunda vez, ela o vira na iminência do encontro, porque quando ele passou rápido por ela antes de entrar no terraço, não a viu. Mas ela já estava lá, encolhida num canto, sentindo-se como se ele não fosse aparecer mais, mas então ele veio e ela sentiu-se como que renascida, contou uns cinco minutos e saiu para o terraço atrás dele. Justamente o sentimento oposto da tarde chuvosa que agora morria, morria despercebida, sem fazer escurecer mais o céu do que a chuva já havia feito. Só o que escurecia era o coração de Rosana. O coração e o amor próprio. Envolta no cobertor, tudo era só escuro. Sentiu vontade de chorar mais, mas conteve-se. Permaneceu sem se mover por não se sabe quanto tempo, como se sua existência fosse suspensa, como se o mundo fosse esperá-la enquanto ela deixava de existir por um instante, um infinito instante que só fazia sentido para ela. Suspirou. Sentia o rosto quente, o suor escorrendo entre a testa e o cobertor. A impaciência voltou com força, a ânsia, franziu a testa e estalou a língua – “que droga!”, exclamou, “que droga!”. Ele já havia partido àquela hora, certamente para sempre.

Entretanto, subitamente, rasgando o barulho da chuva no meio e fazendo o coração dela convulsionar, o telefone vermelho tocou.

Um comentário:

Leti. disse...

Minha adjetivação precária não transcende o "lindo".

Lindo.