Sapos

Do fundo da casa, o coaxar dos sapos trazia à madrugada uma alegria nostálgica. Ao longe, podia-se ouvir o mar. Dois homens adultos largados numa varanda sentiam no rosto a brisa quente de dezembro e permaneciam em silêncio já havia uma eternidade. Do outro lado da rua, uma coruja os espreitava receosa de seu ninho, que nunca se sabe o que esses forasteiros são capazes de fazer embriagados. Uma mulher veio de dentro, copos nas mãos. Sentou-se no meio dos dois homens e quebrou a harmonia muda da noite.
– Sinto que está para chover.
Como nenhum dos dois respondia, ela continuou – Tão enormes vocês dois, tão velhos e ainda de birra.
O homem à esquerda, regata e chinelos de dedo, olhou para ela como se subitamente percebesse sua existência. O homem à direita, barba cerrada e óculos de grau, continuou encarando o nada, limitando-se a fazer uma careta – era o mais orgulhoso dos homens.
– A mãe de vocês diria o que dessa situação?
– Provavelmente ficaria do lado desse aí – resmungou o barbudo sem mover o pescoço.
O homem que não tinha barba bufou, “sempre o mesmo”. A mulher entre os dois estalou a língua, ajeitou-se sobre os próprios joelhos – Adianta manter essa implicância um com o outro, adianta?
O de barba pediu licença e já ia se levantando, a mulher o reteve – Pode ficar aqui, resolveremos isso agora mesmo.
– Como que se resolve vinte anos agora mesmo? – indagou o sem barba, sem se dirigir propriamente à mulher.
– Indo dormir é que não se resolve. Eu não tenho a paciência que a mãe de vocês tinha, família é coisa séria e eu disse que não ia dormir enquanto não resolvesse isso.
– Bom, então você fica aí conversando com seu maridinho e resolvendo isso que eu vou para a cama, quero voltar pra cidade ainda amanhã de manhã.
– Deixa, deixa, que não dá pra falar com ele. Não escuta.
– Você que escuta, não é mesmo?, mas só para poder dizer que é você que está sempre certo.
– Ok, já estabelecemos um diálogo ao menos. – a mulher espalmou as mãos sobre as coxas. Um relâmpago ricocheteou no horizonte ao mesmo tempo, o ar tornou-se mais pesado.
– Não me entendo com esse daí nem que chovam sapos – disse o irmão que estava de pé, e acrescentou – aliás, pergunta para ele por que é que eu detesto sapos.
– Você me diz, por que é que você detesta sapos?
– Um dia a gente tava brincando aqui mesmo nessa casa – respondeu o da regata num meio sorriso – eu e meus amigos...
– Sim, porque só ele é que trazia amigos para a casa de praia. A mãe implicava com qualquer pessoa que tivesse a audácia de apreciar minha companhia. Mas ele não, ele podia ter quantos amigos quisesse, eram todos muito bons...
– De fato, seus amigos eram um pouco estranhos. Todos eles, se é que você me entende.
– Você não tinha me conhecido se eu não tivesse sido amiga dele primeiro – atalhou a mulher.
– Você foi a única com quem a minha mãe não implicou, decerto porque sabia que ele também gostava de você, gostava de você de um jeito que eu nunca pude gostar.
Os três retomaram o silêncio num certo constrangimento. O irmão de barba se arrependeu um pouco do comentário, o de regata abriu a boca para falar um par de vezes, mas não encontrou palavras, pelo menos não boas palavras, palavras que não o comprometessem.
– Enfim – a mulher foi quem quebrou o silêncio novamente – você estava aqui com seus amigos...
– Sim, e eles acharam uma boa idéia – tentou continuar o irmão de regata, mas o barbudo o interrompeu mais uma vez.
– Seus amigos não prestavam. Um era filho do agiota, a outra era filha do estelionatário, os dois iguais aos pais e iguais entre si, não foi à toa que se casaram.
– Eu não sou obrigado a ouvir isso. – Foi a vez do segundo irmão se levantar – A sua gente é que é decente, é? E você quem é para julgar, hein? Me responde, grande coisa que você é, meia dúzia de faculdades pela metade, remédios tarja preta. Quem é você, hein? Eu não fui criado com você.
O de barba enfezou-se, cruzou os braços e apertou os lábios, como um menino grande. O de regata, muito mais corpulento que o irmão, embora ligeiramente mais baixo, o enfrentava de peito estufado, braços para trás, provocando o irmão, patético galo de briga.
A mulher levantou-se também, temendo já pelas vias de fato, mas os irmãos não chegariam a tanto; depois de uma certa idade, nunca mais tinham se agredido fisicamente – o que não fora necessariamente saudável.
– Estamos aqui para resolver problemas, não para criar mais um! Eu não agüento mais esse clima pesado em cada data festiva, em cada aniversário! Eu conheço bem vocês dois, vão resolver isso aqui nem que seja a última coisa que eu faça. Ou eu vou sair, hein, pego o carro e vou embora daqui e nenhum de vocês vai me ver ou falar comigo de novo, nunca mais, ouviram bem?
O irmão de barba riu.
– Que foi, acha que é uma piada?
– Não. Mas você pareceu muito a minha mãe falando agora.
– Esqueci que ela fazia isso – acrescentou o outro – ficava dizendo que ia embora quando a gente brigava. Mas nunca ia, nunca foi.
– Você sempre começava a chorar e ela ficava do seu lado...
Mais um relâmpago refletiu nas janelas da casa de praia. A coruja entocou-se junto aos seus ovos no terreno baldio da frente. O vento acelerou.
– Ela sempre dizia que você era mais parecido com ela – disse o da regata.
– Mas era de você que ela gostava mais.
– Eu acho que não – atalhou a mulher – Só porque ela o protegia mais, não significa que gostava mais dele. Eu concordo com ele, você é muito mais parecido com a mãe de vocês, mais independente. Você é áries, né? A mãe de vocês também era de áries. Eu também sou, é por isso que a gente se dá bem. Seu irmão é de peixes, isso é uma coisa que nós temos em comum: nenhum de nós resiste a um charme de peixes. – Ela passou de leve a mão no rosto do marido, o irmão de regata.
– Mas você bem que gostava era dele... – disse o da regata num tom meio amargo. A esposa, de leve ofendida, afetou horror e resetou a mão.
– Como assim? Como que você me diz uma coisa dessas?
– Todo mundo sabe. – Ele riu, melancólico – até tentaram me alertar, veja só. No dia do casamento, um primo veio me dizer que achava, veio me perguntar se eu não duvidava de que era dele que você realmente gostava, se não tava casando comigo como prêmio de consolação...
A mão que acariciava tão logo se transfigurou em tapa que mesmo o irmão de barba sentiu como se tivesse sido atacado no próprio rosto.
– Às vezes... – a mulher não terminou a frase. Desta vez foi o rouco barulho de um trovão que estourou ao longe, fazendo os sapos coaxarem mais alto.
– Não é impossível, sabe... – disse o irmão esbofeteado esfregando o rosto, para surpresa do outro irmão, aproveitado o ensejo para fugir do conflito que ele mesmo causara – Não é impossível chover sapos. Acontece com freqüência, onde tem furacões e tal.
– Como naquele filme... – disse a mulher desviando os olhos vermelhos dos dois irmãos. O de barba olhava para o casal estupefato, o irmão e a cunhada, o diálogo tornando-se surreal.
– Sim. Os ventos levantam os bichos e chovem partes deles congeladas.
– Que nojo... – disse a mulher franzindo o rosto e encolhendo-se num arrepio, não se sabe se de frio, pelo tempo que virava, ou se de repugnância.
– E que fim leva a história dos sapos afinal? – quis saber ela, esfregando os braços.
– Digamos que... Choveu sapos naquele dia.
– Na minha cama. – o de barba sorria desgostoso; retornava ao diálogo através da má lembrança.
– Era uma brincadeira apenas. Boba, eu sei, mas era brincadeira. Não foi para todo aquele escândalo, voltando para casa no mesmo dia, se recusando a entrar no mesmo carro que eu.
– Cara, odiei você mais naquele dia do que nunca serei capaz de odiar alguém, você me conhecia muito bem, sabia o horror que eu tinha, sempre tive, de anfíbios de qualquer espécie. Mas não foi só isso, você leu coisas que não tinha que ler naquele dia, disso você não se lembra? E espalhou para a corja dos seus amigos. Riram de mim como um bando de bestas, mas grande coisa, hoje eu vejo que aquilo não foi grande coisa. Mas à época foi horrível.
– Eu não sabia disso – disse a mulher.
– E isso que você se considera minha melhor amiga.
O irmão de regata fechou a cara, detestava aquela história de melhor amiga, mais de uma vez brigaram, ele e a mulher, por causa dessa estúpida cumplicidade que ela tinha com o irmão desde a adolescência. Como se adivinhasse o pensamento do irmão, o de barba falou:
– Você sabe, não sabe, que entre eu e ela...? Quero dizer, você entende, não entende?
– Eu tento entender. Aliás, eu sei que é impossível, eu sei que nunca... Bom, aceitar uma coisa e outra foram os dois maiores problemas da minha vida, você sabe bem disso. Engraçado você estar no centro dos dois.
– Não posso fazer muito a respeito. Dizer que sinto muito?
– Não me convence.
– Porque eu não sinto. Não sinto por ser eu mesmo, não sinto por ser amigo da sua esposa. O único problema que eu tenho faleceu.
Do outro lado da rua, a coruja piou de dentro do ninho.
– Se faleceu, – disse a mulher – se faleceu, então está morto. Enterrado. Não há mais que se preocupar.
– Aí é que você se engana – respondeu o da barba, os olhos brilhantes – os problemas tem vida útil para serem resolvidos, depois de falecidos e enterrados, então não é mais possível matá-los, é se acostumar com eles até a nossa própria morte.
– Sempre dramático! – o de regata virou os olhos.
– Eu não sei que ainda estou fazendo que não fui dormir, boa noite pro casal.
– Espera... – quis dizer a mulher, mas, nesse mesmo instante, um objeto maciço caiu com força no telhado da varanda, barulho forte de pancada, e escorregou para o chão num reflexo verde. Os três calaram-se e baixaram a cabeça para procurar na grama do que se tratava o objeto cadente. Nisso a chuva começou a cair.

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