Eu sou esposa, mãe e profissional. Como mulher, busco sempre o melhor para mim e para minha família. Não posso deixar de considerar essa história de família um apelo, e dos bem fracos. Família para mim, o que é família, senão embuste? É carga. É uma companhia inteira de atores ruins que sufoca. Eu que não sou diva nem sei se poderia ser, tolhida que fui pela minha família. Busco sempre o melhor para mim e para minha família, por isso tenho sempre Felicidade ao meu lado.
Sou mulher. Mãe esposa profissional. Como mulher – mãe, esposa e profissional – uso Felicidade. Compro Felicidade todos os dias, no supermercado, na farmácia e até na banca de revista. Toda dona-de-casa usa Felicidade. Que você está fazendo que ainda não comprou a sua?
Sou mãe, sim, privilégio insustentável, mas não tenho meus filhos ao meu lado. Meu cachê mal dá para mim, vou lá manter meus filhos. Dra. Suzana também é de opinião de que é melhor que eu os deixe com o pai por enquanto, lá eles têm Felicidade todos os dias, nas horas certas. Eu devia ter sido advogada. Minha mãe insistiu tanto que eu fosse advogada, queria tanto, fazia planos. Só buscava o melhor para ela e para a família, mulher que era. Ela também tinha Felicidade sempre ao seu lado. Até quando se deu um tiro bem no meio do peito por causa do câncer, a Felicidade estava sobre a mesa de cabeceira, recém aberta, comprada naquela manhã mesmo. Não chegou a ser consumida até o final. Nunca uso Felicidade até o fim, quando está acabando uma, sempre abro outra.
Meu pai foi quem ficou abatido nesse dia, muito mais do que se poderia prever. Meu pai era estranho, não usava Felicidade: achava supérfluo. Passou anos abatido depois da morte da minha mãe, descontando só em mim, filha única, todas as desgentilezas que distribuía antes igualmente entre as duas, pobre coitado, pelo que podia esperar agora? Que eu vá busca-lo, decerto, lá no asilo em que o deixei, ele sem saber quem eu era direito, mas com memória boa para humilhações, continua bom em humilhar, mesmo perto do fim. Da última vez em que o visitei, perguntou o que era mesmo que eu fazia da vida. Abri um largo sorriso, fotográfico mesmo. Peguei sua mão. Falei sobre minha bem sucedida carreira de atriz, a grande casa à beira-mar, as crianças, os cachorros, que lindos eram meus cachorros!, e tão inteligentes. Meus filhos também eram inteligentes: precisava ver o mais velho, o mais velho se chama Humberto, como o avô! Falei também, não pude deixar de falar, do meu dedicado marido, que me adora mais do que tudo. “O senhor sabe”, eu dizia, “sabe que outro dia meu marido falou brincando – ele sempre fala as verdades brincando – falou brincando que era capaz de fazer o que eu bem mandasse ele fazer, veja só! Que não havia lei natural nem legislada que imperasse acima da minha vontade, acima da magnanimidade absoluta dos meus caprichos; Deus, esse Deus em que acreditamos tanto, fala por mim, chega mesmo a morar na minha voz, o senhor veja só que heresia, pai!”.
“Eu mandei ele parar de dizer asneiras“, eu continuava contente, “parar com as bobagens, que aquilo virava praga, e se um dia eu mandasse ele se matar, se atirar da sacada do quarto andar da nossa linda casa branca que crescia da areia da praia com floreios cor-de-rosa nas janelas e nas portas, e se eu mando você se matar? Sabe o que ele respondeu, pai, sabe? Eu me mato. Me mato, mato meus filhos, mato quem for, é só você me mandar – ‘assassine!’ – que eu mato”. Meu pai senil suspirou um “puta mentirosa como a mãe” que eu sequer ouvi. Tão baixinho ele me xingou, tão sem forças, mas eu nem precisava que ele emitisse nenhum som, eu já tenho a prática sabe, eu sei quando ele me humilha pelo olhar, pelo ar abrasador que desprende da pele dele, como se a palma da mão grossa viesse firme de encontro a meu orgulho. O orgulho a gente guarda no rosto.
Deixei-o neste dia para sempre, mas não se pode dizer que não o amo, o amo tanto que nunca deixei atrasar uma mensalidade do asilo. Uma coisa não posso reclamar do meu pai, ele nunca me deixou faltar nada, sempre pagou tudo muito em dia. Deixava de beber com os amigos, de jogar no bicho, ou no bocha, e no que mais que ele poderia gostar de fazer, deixava tudo isso de lado para botar comida em casa, comida, água, luz. Só não admitia gastar com Felicidade, Felicidade minha mãe é que comprava escondida e dividíamos a Felicidade entre nós depois que ele saía, descartando a embalagem no latão de lixo da rua para ele nem desconfiar. Não deixo faltar nada a ele também na velhice, pago suas despesas em dia, em detrimento das minhas despesas até, em detrimento da pensão que eu deveria pagar aos meus filhos, mas que o meu ex-marido recusa, graças a Deus, por orgulho. Mas compro Felicidade para eles quando a gente sai, final de semana sim, final de semana não, disso eu não abro mão. Não deixo que eles me visitem na minha casa, entretanto. Busco sempre o melhor para minha família, por isso eles vivem com o pai. O mais velho, o Humberto, tinha seus onze anos à época do divórcio, meu adorado primogênito, nunca pude esconder nada dele. Tão parecido comigo! Não queria morar com o pai, “mãezinha, me deixa ficar aqui com a senhora e com o tio”, “não, meu filho, é melhor você morar com o papai, não chora que você vai ficar sem Felicidade se chorar”. O “tio” não queria que ele ficasse, eu até cheguei a pedir, ele se exaltou muito. Quando o “tio” me abandonou, quis buscar meu primogênito, “ainda quer ficar com a mãezinha?”, mas não tive coragem. Ele já estava grande, grande, já ganhava seu dinheiro e comprava sua própria Felicidade se quisesse.
Dinheiro. Emprego. Quando o “tio” foi embora, a mãe teve que ver emprego, meu filho, a mãe não era mais esposa, agora tinha que ser mais profissional do que nunca. Retomei a carreira de atriz, porque outra coisa não podia fazer.
Engraçado que no dia em que deixei meu pai para sempre, voltei para meu quarto-e-sala no centro e o telefone encardido tocou, era da produtora. Gravo o comercial amanhã, quem diria, logo eu, nessa altura da vida, mulher-propaganda da Felicidade. Precisavam de uma atriz madura, uma mulher – mãe, esposa, profissional.
Fiquei lembrando de um dia das mães na escola, eu ainda casada, as crianças todas enfileiradas recitando um poema. Depois iam falando: “minha mãe é dos correios, minha mãe dirige táxi, minha mãe é policial”. Chegou a vez do Humberto, ele todo orgulhoso se empertigou e disse “mamãe é atriz, vai ser famosa!”. Tão famosa, a mãe dele, larguei o grupo de teatro quando casei, tentei ser funcionária do banco, mas não podia, não podia. Decidi ser atriz em casa, atuava quando preparava o café, exercitava minha expressão corporal na faxina, fazia de servir um jantar um grande ato que arrancava lágrimas dos convidados. Era a estrela da farsa da vida doméstica, colhendo os louros da fama de boa esposa e boa mãe – excelente profissional – mas esperando sempre pelo dia em que a peça sairia de cartaz, porque sabia que não durava para sempre. Ser feliz não é saber que tudo acaba bem, mas saber que tudo, por pior que seja, acaba. Felicidade sempre subindo de preço, cada vez mais cara – onde é que esse país vai parar?
Foi tão dolorosa a separação dos meus filhos, rasgou-se o cordão à pistola, minhas entranhas rebentadas por dentro. Fui aos especialistas, tomei remédios. Dra. Suzana foi minha amiga confidente. Voltei à forma finalmente quando deixei meu pai no asilo, consegui o comercial no telefonema da produtora – eu busco sempre o melhor para minha família, mas família é estorvo. Amanhã gravamos, o produtor me ligou hoje, senhor simpático. Já fomos tomar um chope. Tão atraente! Barba grisalha muito bem aparada e cheira bem, como cheira bem, como um lorde inglês. Sua esposa tem muita sorte, não é por nada que escolhe tão bem as roupas, o perfume dele. Tudo muito distinto.
Quando saímos, mal uso batom, mal me perfumo. Sinto que não tenho direito de macular aquele corpo sagrado de marido com minha astúcia de adúltera, procuro o zelo da esposa, da mãe, da profissional – da mulher. Foi a mulher quem conseguiu esse papel nesse comercial. Quando ele veio aqui da última vez, recitei meu texto para ele, ele achou minha entonação bastante boa, bastante natural, bastante sincera: sou mãe, esposa e profissional. No meu dia-a-dia, busco sempre o melhor para mim e para minha família. É por isso que eu uso Felicidade. Faça como eu e tenha Felicidade sempre ao seu lado. Felicidade – quem ama usa!
Sou mulher. Mãe esposa profissional. Como mulher – mãe, esposa e profissional – uso Felicidade. Compro Felicidade todos os dias, no supermercado, na farmácia e até na banca de revista. Toda dona-de-casa usa Felicidade. Que você está fazendo que ainda não comprou a sua?
Sou mãe, sim, privilégio insustentável, mas não tenho meus filhos ao meu lado. Meu cachê mal dá para mim, vou lá manter meus filhos. Dra. Suzana também é de opinião de que é melhor que eu os deixe com o pai por enquanto, lá eles têm Felicidade todos os dias, nas horas certas. Eu devia ter sido advogada. Minha mãe insistiu tanto que eu fosse advogada, queria tanto, fazia planos. Só buscava o melhor para ela e para a família, mulher que era. Ela também tinha Felicidade sempre ao seu lado. Até quando se deu um tiro bem no meio do peito por causa do câncer, a Felicidade estava sobre a mesa de cabeceira, recém aberta, comprada naquela manhã mesmo. Não chegou a ser consumida até o final. Nunca uso Felicidade até o fim, quando está acabando uma, sempre abro outra.
Meu pai foi quem ficou abatido nesse dia, muito mais do que se poderia prever. Meu pai era estranho, não usava Felicidade: achava supérfluo. Passou anos abatido depois da morte da minha mãe, descontando só em mim, filha única, todas as desgentilezas que distribuía antes igualmente entre as duas, pobre coitado, pelo que podia esperar agora? Que eu vá busca-lo, decerto, lá no asilo em que o deixei, ele sem saber quem eu era direito, mas com memória boa para humilhações, continua bom em humilhar, mesmo perto do fim. Da última vez em que o visitei, perguntou o que era mesmo que eu fazia da vida. Abri um largo sorriso, fotográfico mesmo. Peguei sua mão. Falei sobre minha bem sucedida carreira de atriz, a grande casa à beira-mar, as crianças, os cachorros, que lindos eram meus cachorros!, e tão inteligentes. Meus filhos também eram inteligentes: precisava ver o mais velho, o mais velho se chama Humberto, como o avô! Falei também, não pude deixar de falar, do meu dedicado marido, que me adora mais do que tudo. “O senhor sabe”, eu dizia, “sabe que outro dia meu marido falou brincando – ele sempre fala as verdades brincando – falou brincando que era capaz de fazer o que eu bem mandasse ele fazer, veja só! Que não havia lei natural nem legislada que imperasse acima da minha vontade, acima da magnanimidade absoluta dos meus caprichos; Deus, esse Deus em que acreditamos tanto, fala por mim, chega mesmo a morar na minha voz, o senhor veja só que heresia, pai!”.
“Eu mandei ele parar de dizer asneiras“, eu continuava contente, “parar com as bobagens, que aquilo virava praga, e se um dia eu mandasse ele se matar, se atirar da sacada do quarto andar da nossa linda casa branca que crescia da areia da praia com floreios cor-de-rosa nas janelas e nas portas, e se eu mando você se matar? Sabe o que ele respondeu, pai, sabe? Eu me mato. Me mato, mato meus filhos, mato quem for, é só você me mandar – ‘assassine!’ – que eu mato”. Meu pai senil suspirou um “puta mentirosa como a mãe” que eu sequer ouvi. Tão baixinho ele me xingou, tão sem forças, mas eu nem precisava que ele emitisse nenhum som, eu já tenho a prática sabe, eu sei quando ele me humilha pelo olhar, pelo ar abrasador que desprende da pele dele, como se a palma da mão grossa viesse firme de encontro a meu orgulho. O orgulho a gente guarda no rosto.
Deixei-o neste dia para sempre, mas não se pode dizer que não o amo, o amo tanto que nunca deixei atrasar uma mensalidade do asilo. Uma coisa não posso reclamar do meu pai, ele nunca me deixou faltar nada, sempre pagou tudo muito em dia. Deixava de beber com os amigos, de jogar no bicho, ou no bocha, e no que mais que ele poderia gostar de fazer, deixava tudo isso de lado para botar comida em casa, comida, água, luz. Só não admitia gastar com Felicidade, Felicidade minha mãe é que comprava escondida e dividíamos a Felicidade entre nós depois que ele saía, descartando a embalagem no latão de lixo da rua para ele nem desconfiar. Não deixo faltar nada a ele também na velhice, pago suas despesas em dia, em detrimento das minhas despesas até, em detrimento da pensão que eu deveria pagar aos meus filhos, mas que o meu ex-marido recusa, graças a Deus, por orgulho. Mas compro Felicidade para eles quando a gente sai, final de semana sim, final de semana não, disso eu não abro mão. Não deixo que eles me visitem na minha casa, entretanto. Busco sempre o melhor para minha família, por isso eles vivem com o pai. O mais velho, o Humberto, tinha seus onze anos à época do divórcio, meu adorado primogênito, nunca pude esconder nada dele. Tão parecido comigo! Não queria morar com o pai, “mãezinha, me deixa ficar aqui com a senhora e com o tio”, “não, meu filho, é melhor você morar com o papai, não chora que você vai ficar sem Felicidade se chorar”. O “tio” não queria que ele ficasse, eu até cheguei a pedir, ele se exaltou muito. Quando o “tio” me abandonou, quis buscar meu primogênito, “ainda quer ficar com a mãezinha?”, mas não tive coragem. Ele já estava grande, grande, já ganhava seu dinheiro e comprava sua própria Felicidade se quisesse.
Dinheiro. Emprego. Quando o “tio” foi embora, a mãe teve que ver emprego, meu filho, a mãe não era mais esposa, agora tinha que ser mais profissional do que nunca. Retomei a carreira de atriz, porque outra coisa não podia fazer.
Engraçado que no dia em que deixei meu pai para sempre, voltei para meu quarto-e-sala no centro e o telefone encardido tocou, era da produtora. Gravo o comercial amanhã, quem diria, logo eu, nessa altura da vida, mulher-propaganda da Felicidade. Precisavam de uma atriz madura, uma mulher – mãe, esposa, profissional.
Fiquei lembrando de um dia das mães na escola, eu ainda casada, as crianças todas enfileiradas recitando um poema. Depois iam falando: “minha mãe é dos correios, minha mãe dirige táxi, minha mãe é policial”. Chegou a vez do Humberto, ele todo orgulhoso se empertigou e disse “mamãe é atriz, vai ser famosa!”. Tão famosa, a mãe dele, larguei o grupo de teatro quando casei, tentei ser funcionária do banco, mas não podia, não podia. Decidi ser atriz em casa, atuava quando preparava o café, exercitava minha expressão corporal na faxina, fazia de servir um jantar um grande ato que arrancava lágrimas dos convidados. Era a estrela da farsa da vida doméstica, colhendo os louros da fama de boa esposa e boa mãe – excelente profissional – mas esperando sempre pelo dia em que a peça sairia de cartaz, porque sabia que não durava para sempre. Ser feliz não é saber que tudo acaba bem, mas saber que tudo, por pior que seja, acaba. Felicidade sempre subindo de preço, cada vez mais cara – onde é que esse país vai parar?
Foi tão dolorosa a separação dos meus filhos, rasgou-se o cordão à pistola, minhas entranhas rebentadas por dentro. Fui aos especialistas, tomei remédios. Dra. Suzana foi minha amiga confidente. Voltei à forma finalmente quando deixei meu pai no asilo, consegui o comercial no telefonema da produtora – eu busco sempre o melhor para minha família, mas família é estorvo. Amanhã gravamos, o produtor me ligou hoje, senhor simpático. Já fomos tomar um chope. Tão atraente! Barba grisalha muito bem aparada e cheira bem, como cheira bem, como um lorde inglês. Sua esposa tem muita sorte, não é por nada que escolhe tão bem as roupas, o perfume dele. Tudo muito distinto.
Quando saímos, mal uso batom, mal me perfumo. Sinto que não tenho direito de macular aquele corpo sagrado de marido com minha astúcia de adúltera, procuro o zelo da esposa, da mãe, da profissional – da mulher. Foi a mulher quem conseguiu esse papel nesse comercial. Quando ele veio aqui da última vez, recitei meu texto para ele, ele achou minha entonação bastante boa, bastante natural, bastante sincera: sou mãe, esposa e profissional. No meu dia-a-dia, busco sempre o melhor para mim e para minha família. É por isso que eu uso Felicidade. Faça como eu e tenha Felicidade sempre ao seu lado. Felicidade – quem ama usa!
Um comentário:
Esse tá a nível profissional!
Me lembrou um conto do Verissimo (filho), A Voz da Felicidade.
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