Uma taça de leite quente

Havia qualquer coisa na manhã que era diferente. Raissan de alguma forma notou, mas não acreditava que lhe dissesse respeito, era provavelmente o ar mais poluído, a rua mais suja, o arroio mais fétido, qualquer coisa assim que não fazia diferença para ele. Tirou os sapatos, como de costume, dobrou cuidadosamente o moletom e escondeu tudo debaixo de uma das pontes que cruzava a avenida, receoso dos outros meninos da rua. Àquela hora da manhã, o fluxo de automóveis era bastante intenso já, Raissan tomou seu lugar ao lado do semáforo. Mal avermelhou o disco, partiu para a primeira rodada do dia. Teve sorte logo no primeiro carro, uma moça, uns vinte anos, lhe alcançou umas moedas e uma metade de sanduíche, que acabou dividindo com três ou quatro meninos que conhecia de vista, porque sabia que os egoístas não duravam muito tempo no negócio. Seus pequenos pés, endurecidos da labuta diária, iam e vinham ágeis entre as máquinas, uns carros fechando suas janelas depressa ao avistar-lhe e aos outros meninos, outros recusando ajuda. Outros ainda contribuindo com um trocado, mas todos eles de olhares temerosos, pavor, pavor pregado nos rostos. Raissan não compreendia, com toda sabedoria de rua que tinha aos quatro anos, porque era que os olhares dos homens dos carros eram tão pavorosos. Raissan tinha muito medo do escuro e à noite, quando a madrasta e os irmãos dormiam ao seu lado, e sempre dormiam antes dele, pregava os olhos e ficava imóvel, mudo de terror, exatamente como aquelas pessoas ficavam quando ele se dirigia a elas, então, de certo modo, sabia o que sentiam. Não sabia bem era o que é que temiam, algum monstro, ou bicho, ou inseto, não sabia, não podia entender como era que aqueles homens e mulheres tão adultos, tão limpos e confortáveis dentro de seus carros, podiam temer tanto alguma coisa na ordem estofada que eram suas vidas. Estofamento e medo eram duas idéias que, para Raissan, não faziam sentido unidas.

Nos intervalos entre uma fechada de sinal e outra, Raissan gostava de observar os personagens que se aglomeravam no cruzamento. Havia as crianças como ele, pedindo, os adultos que também pediam, as crianças e adultos que vendiam alguma coisa, os artistas e os vendedores de jornais, que procuravam não entrar em contato com o resto, um ou outro pedestre, que passava bem depressa, e os motoristas, cujos perfis compenetrados passavam mais depressa ainda. A velocidade deles não se comparava, é claro, proporcionalmente, à velocidade das curtas pernas de Raissan, grossas de ficar em pé o dia todo, que conheciam pelo tato o caminho entre os carros e lampejavam aqui e ali, onde houvesse uma janela aberta. Uma vez ou outra, esperando o momento de pedir, Raissan desejava que o dia passasse tão depressa quanto os intervalos dos semáforos. Detestava passar o dia todo ali, digo, para ele não faria diferença passar algum tempo na sinaleira, uma hora ou duas, ou até atingir determinado valor, porque no fundo, não era um menino preguiçoso, mas não tinha essa opção. Era ficar no sinal do amanhecer até quase a madrugada, ai dele se aparecesse antes. E se tentava escapar, a madrasta sabia, sempre sabia quando ele não permanecia o dia todo em seu posto, não sabia como, mas aquela danada daquela mulher podia adivinhar-lhe as mentiras, e, quando isso acontecia, era surra na certa. Já pensara em fugir para sempre também, nunca mais voltar para casa, mas não tinha para onde ir. Sofreria mais num abrigo sem o pai, sem os irmãos, sem ninguém, e mais ainda na rua, as coisas que as crianças que ficavam pela rua tinham de fazer eram terríveis demais mesmo para Raissan, que estava acostumado com a aridez do asfalto, com a dureza do cruzamento. O menino ficava exausto só de pensar na caminhada que lhe aguardava no fim do dia, da avenida até a casa da madrasta, mas não voltar para lá, ficar pelas marquises da avenida, como muitos dos que ele conheciam ficavam, era potencialmente pior.

Lá pela metade da manhã, Raissan já havia juntado uma quantidade razoável de moedas, poderia até barganhar alguma coisa para almoçar ao meio-dia. Estava satisfeito consigo mesmo. Foi quando avistou o Renan.

O Renan era o líder de um grupo de caras mais velhos, de treze, quatorze anos, que se chapavam e achavam que por isso podiam mandar nos menores. Metiam medo em todo mundo, andavam sempre em bandos, como uma matilha, pedaços de metal afiados nos bolsos, cola nas mangas, chinelos de dedo e tênis roubados de outros moradores de rua. Habitavam uma praça no centro durante a madrugada, dizia-se que alguns deles até se prostituíam, mas ai de quem falasse isso perto de um deles, ou que eles ouvissem falar de alguém que tivesse dito isso: era lâmina para o infeliz. Uma vez, Raissan presenciara quando um menino um pouco mais velho que ele, que devia alguma coisa ao Renan, não se sabe bem, e que quando avistou o bando vindo, mais ou menos na mesma hora em que vinham hoje, tentou fugir deles para o meio da rua e morreu atropelado. Naquele dia, Raissan voltou mais cedo para casa, assim que escureceu. Contou para a madrasta o que acontecera, explicou que o maior medo que tinha era de morrer atropelado e que se sentira tonto o dia todo depois de presenciar a morte do outro garoto. A madrasta não lhe bateu daquela vez, apenas gritou com ele, “e medo de morrer de fome, você não tem”, e Raissan não pôde dormir por uns dois dias depois disso; cada vez que pegava no sono, era como se o menino morto viesse falar com ele, dizer para tomar cuidado com as ruas tocando os dedos transparentes e frios no seu ombro, o mesmo cheiro do arroio invadindo as narinas de Raissan. Dizia também para não se meter com Raissan, não usar cola, nem usar pedra, que foi por causa disso que ele morrera. Raissan tinha muito medo de cole e de pedra, tanto quanto tinha de escuro e de atropelamento. O pai, mesmo ébrio, lhe dizia sempre para não se meter com essas coisas, mas nem precisava, Raissan se mantinha longe delas por vontade própria. Naquela manhã, ao ver se aproximar o bando de Renan, usou sua técnica de ficar invisível, aprendida um desenho numa manhã de domingo, o único dia em que a madrasta o permitia não ir para o sinal pela manhã. Não sabe se é porque estava nervoso, ou porque estava nublado – desde o início sabia que aquela era uma manhã diferente –, mas o fato é que não funcionou o truque, Renan não somente o avistou como decidiu mexer com ele. O bando parou rindo do seu lado, um dos caras já cutucando o seu rosto, outro pedindo dinheiro, “ajuda aí meu, todo mundo tá dizendo que tu tá bem hoje”. Como ele fizesse menção de não entregar o dinheiro, o próprio Renan o segurou rudemente pelo ombro e mandou ele passar algumas das moedas que conseguira, porque “quem era egoísta não sobrevivia no negócio”. Raissan alcançou ao garoto um punhado de moedas de má vontade. “Mais, meu”, exigiu o bando, Raissan foi dando mais, já dera mais da metade do que reunira naquela manhã, “mais!”; deixaram-no sem uma moeda sequer. Renan ainda cuspiu nele antes de ir embora, “bicha, tem um jeito de mulherzinha”, desapareceu o bando numa nuvem de loló, rindo feito doidos, feito humanos ante um filme de terror daqueles violentíssimos.

Raissan sentiu vontade de chorar, mas num segundo só sentia raiva, falou todos os nomes feios que conhecia, os débeis lábios explodindo ferozes em vulgaridades pornográficas e escatológicas, muitas das quais nem sabia o significado – muitos adultos de quarenta anos que passavam indiferentes em seus carros não sabiam os significados da maioria delas.

Voltando para casa à noite, cabisbaixo, com metade do dinheiro do dia nos bolsos, pensou num milhão de vinganças que podia pôr em prática contra Renan, formaria seu próprio bando, pagaria por uma arma, machucaria tanto o Renan antes de roubar tudo o que ele tinha e depois o deixaria nu para ser atropelado no meio da avenida. Chegou em casa um pouco mais tarde que de costume, a madrasta foi logo lhe gritando da oura peça que o irmão estava doente e que precisava de ajuda, e também que a janta que fez acabara porque seu pai chegara em casa com muita fome e que ele podia ver alguma coisa na geladeira para comer.

Ouviu, Raíza? – a menina levou um susto ao recobrar a condição feminina. Eventualmente se esquecia de que em casa ainda havia alguma segurança. Lavou os pés escurecidos enxugando-os no pano de chão. Na geladeira, apenas leite gelado, que Raíza serviu numa caneca de plástico. Esqueceu a avenida no que durou aquele leite, deixou de lado o Raissan, o Renan e seu bando, o disco luminoso trocando de cor sobre os motoristas e seu medo. Quase esqueceu os próprios medos, mas eles voltaram quando, no quarto escuro, a madrasta a mandou ficar de guarda e foi se deitar com seu pai do outro lado da cortina. Adormeceu tirando a febre do bebê, o gosto de leite ainda na boca.

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