Sonhei com o cavalo que dançava. Quando eu era criança, via aquele cavalo e achava o máximo a disposição que ele tinha de se embalar o tempo todo, a cabeça para lá e para cá, a pata dianteira direita marcando o ritmo trinário de uma valsa. Perdia horas na chácara, estava sempre aproveitando um descuido dos outros para me isolar nas baias e prestar atenção na dança do cavalo, que morreu pouco tempo depois, assim que nos mudamos, eu e minha mãe, meu pai ficando para trás e amaldiçoando-nos como se fossemos os culpados da morte do animal dançarino. Ele veio me ver esta noite, falou comigo. Juntos nos lembramos daqueles tempos, quando eu acordava muito cedo para ir à escola na cidade e voltava correndo à hora do almoço, louco para vê-lo, abraçá-lo, falar com ele sobre qualquer coisa assim que nos aproximasse. Ele me contou o quanto foi triste ficar na chácara depois que nos mudamos, quanta saudades sentiu enquanto definhava, uma morte solitária, dançando sua valsa até o fim. Éramos bons amigos eu e aquele cavalo. Veio sobretudo para me dar conselhos.
Acordei às quatro da tarde, os lábios cortados como se tivesse mastigado cacos de vidro. Era tarde demais para ir à aula. Ninguém em casa, comi qualquer coisa que sobrou do almoço. O telefone tocou até que o desliguei com raiva, não estava em casa, tecnicamente. Às cinco horas, peguei a mochila e fui à biblioteca da faculdade, onde dava para ficar sozinho sem pagar nada, porque minha mãe logo chegava do trabalho e eu não agüentaria ficar em casa. Escolhi a mesa mais ao fundo para dormir até umas oito horas, às nove tinha um compromisso. Dispus os livros à minha frente como quem arruma o travesseiro, quando a surpreendi me encarando. Não pude conter um estalo de língua, ela percebeu e enfureceu-se, veio direto em minha direção bufando. Eu já guardando os livros de volta para uma provável saída emergencial. Ainda não tinha decidido se a ouvia antes de sair quando ela puxou a cadeira e sentou-se, o nariz contraído de raiva esperando que eu me explicasse.
– Não tenho nada para explicar – Ela meio que quis rir, controlando-se, porém.
– Não é questão para explicações, é só confirmar o que é óbvio, a palavra final para oficializar o negócio, a legitimação para partir para a próxima.
Era a jurista falando, perdi a calma.
– Tudo o que eu tinha para dizer eu já disse no telefone, com licença, sim?
– Como assim com licença?
– Eu tenho um compromisso – levantei. Ela me acompanhou no gesto.
– Você ia dormir. Foi exatamente aqui, dormindo, que eu te conheci.
Flashes de nós dois, dedos entre cabelos num sofá de boate, como é que ela me levou a sério?
– Posso pedir um porquê? – Ela disse entre dentes, o orgulho que eu esmaguei desintegrando-se bem diante de mim.
– Eu já expliquei. É uma questão de fato. Cansei, enjoei, chama do que você quiser.
– A gente combinou...
– Sim, a gente combinou, mas eu não tava a fim sabe, tava a fim de fazer outras coisas, de dormir mais, mas não podia porque tinha combinado, mas que é vale a combinação?, por que é que tem que ser tudo assim institucionalizado, preso, desagradável? Por que não pode ser leve?, espontâneo?, não tô a fim, não tô afim, ponto final.
– Não é por isso ou por aquilo, não é porque sou eu. Você combinou, eu não deixaria de cumprir o combinado porque é falta de consideração com a pessoa, entende, seja ela quem for.
– Você me vê combinando coisas por aí com alguém? Eu deixei isso claro, você me obrigou a combinar. Você provocou tudo isso.
– Não dá mesmo para falar com você. – ela suspirou. Deixou-me na biblioteca. Olhei para o lado. O cavalo estava ali, dançando. Rindo de mim.
2 comentários:
tu tinha mesmo que largar aquela porcaria de palácio.
admiro muito tua decisão.
e sinto um pouco de inveja também :)
chico, é hora de atualizar!
Postar um comentário